Sob a batuta refinada do cultuado Orson Welles, A Marca da Maldade (1958) resume o impacto de uma inventiva direção na construção de um filme. Mesmo
diante de alguns evidentes problemas narrativos, o "pai" do icônico
Cidadão Kane eleva o nível deste instigante suspense 'noir' ao desfilar o seu
vasto repertório de enquadramentos, planos sequências e movimentos de câmera ainda hoje expressivos. Responsável por uma das mais antológicas
cenas de abertura da história da sétima arte, Welles esbanja o seu virtuosismo
estético ao potencializar a atmosfera de tensão em torno da relação entre um
idealista oficial mexicano e um inescrupuloso detetive norte-americano. A partir de temas como
a moralidade e a ética policial, o realizador não só arquiteta um 'mise en scene' ágil e
violento, como também nos brinda com um dos personagens mais ricos da sua
carreira, o corrupto Hank Quinlan, um homem cínico e decadente que se torna a
alma desta corrosiva película.
Adaptação do suspense homônimo escrito por Whit Masterson, A Marca da
Maldade surpreende ao jogar o seu holofote no complexo antagonista. Indo de
encontro às fórmulas do Cinema 'Noir', o argumento assinado pelo próprio Orson
Welles decide apostar num protagonista bravo e idealista, um tipo heroico que
parece não pertencer a este gênero. Por outro lado, o perverso Hank Quinlan é o
porta voz deste cenário sujo e amoral. Um personagem decadente, por vezes
ambíguo, que esconde na sua aparente superioridade uma personalidade frágil e
preconceituosa. Através destes contrastantes protagonistas, Welles coloca o
dedo na ferida ao questionar a popular teoria que os fins
justificam os meios, escancarando a corrupção, o corporativismo policial e a imoralidade social ao revelar o
'modus operandi' deste ardiloso detetive. Não se engane, porém, com a aparente
unidimensionalidade do antagonista. Impulsionado pela metamorfose física de
Walles, que surge em cena obeso e cansado, o personagem revela traços
naturalmente humanos, momentos sinceros que se tornam decisivos para a
construção de algumas das mais marcantes sequências.
Na trama, prestes a iniciar a sua viagem de lua de mel, o policial
mexicano Mike Vargas (Charlton Heston) é pego de surpresa ao presenciar um
violento atentado na fronteira entre o México e os EUA. Ao lado de sua esposa
Susan (Janet Leigh), ele é o primeiro a chegar ao local do crime e se coloca a
disposição para contribuir na averiguação. Como a explosão aconteceu do lado
americano, a investigação cai nas mãos do veterano detetive Hank Quinlan (Orson
Welles), um respeitado policial com histórico de muitas detenções. Mesmo
incomodado com a presença do oficial mexicano, ele é "cortes" e
permite que Vargas participe dos interrogatórios. Aos poucos, no entanto, a
postura "intuitiva" de Quinlan começar a levantar uma série de
dúvidas na cabeça do mexicano, o que rapidamente se torna uma rixa entre os
dois. Pra piorar, um influente mafioso latino (Akim Tamiroff) resolve entrar no
"jogo" para impedir que Chavez participe de outro caso, um julgamento
envolvendo um figurão da máfia, ameaçando não só a investigação, como também a
vida da sua bela mulher.
Sob o ponto de vista narrativo, A Marca da Maldade se revela um suspense
intrigante, mas oscilante. Como de costume em sua carreira, Orson Welles mostra
perícia ao construir a atmosfera de tensão, permitindo que a trama se
desenvolva com solidez da intensa sequência inicial até o intenso clímax. Amparado pela montagem picotada e pela atmosfera sombria, o realizador é
igualmente habilidoso ao aproximar os dois lados desta trama. Por mais que o
foco central esteja na relação entre Vargas e Quinlan, Welles consegue fazer um
excelente uso dos personagens de apoio, principalmente da determinada Susan, do
ardiloso Joe Grandi, da magnética Tanya (Marlene Dietrich, numa aparição
especialíssima) e do errático Pete (Joseph Calleia), dando substância a uma
premissa que não se revela tão inovadora. Nos momentos em que precisa alcançar
a excelência, porém, o argumento vacila. Todo o ato final, por exemplo, é
construído a partir de soluções frágeis e convenientes mudanças de atitude.
Ainda que o processo de deterioração de Quinlan seja brilhantemente
desenvolvido, a preparação para o último ato me pareceu forçada e um tanto
quanto apressada. Além disso, apesar de absorver com vigor a honestidade do seu Vargas, Charlton Heston ganha
uma aparência artificial que por vezes me distanciou do personagem. Pra piorar,
alguns dos coadjuvantes são caricatos e\ou irritantes, com destaque (negativo) para o
estranhíssimo recepcionista interpretado por Dennis Weaver. Por fim,
inicialmente independente e corajosa, a promissora Susan é subaproveitada ao
longo da segunda metade da película e fica reduzida a típica donzela indefesa.
Uma pena, já que a enérgica Janet Leigh rouba a cena ao longo do primeiro ato.
No que diz respeito ao
aspecto visual, no entanto, A Marca da Maldade figura entre as produções mais
virtuosas da sua geração. Após uma década de "exílio profissional" na
Europa, um afastamento motivado pelo seu temperamento forte e pelos seus
constantes estouros de orçamento em Hollywood, o diretor ganhou uma nova
chance neste suspense 'noir' e não decepcionou. Mesmo diante do limitado
orçamento, Welles deu uma verdadeira aula ao exibir o seu vasto repertório de
enquadramentos e movimentos de câmera. Já na icônica cena de abertura, um plano
sequência de quase três minutos, ele absorveu a essência do termo suspense ao
acompanhar um explosivo atentado automotivo. Num todo, aliás, Welles abre
espaço para uma série de inspirados planos sequenciais, incrementando o 'mise
en scene' narrativo ao acompanhar bem de perto o processo de investigação de
Vargas e Quinlan. Em alguns momentos, inclusive, Welles se arrisca ao criar
takes totalmente inovadores, entre eles a acelerada cena envolvendo um carro
conversível em movimento. Além disso, mesmo nas sequências mais espontâneas, o
realizador impressiona ao apostar em planos milimetricamente arquitetados, enquadramentos que parecem ter sido exaustivamente calculados tamanho requinte e profundidade. Impulsionado pela refinada fotografia de Russell Metty (Spartacus), Welles faz questão de enfatizar a relação entre a figura e o fundo, entre a luz e a sombra, realçando através dos seus expressivos ângulos a superioridade e a deterioração de Quinlan. Melhor ainda, aliás, é a construção da fantástica cena final, um elaborado clímax marcado pelos movimentos de câmera lateral, pela tensa montagem e pela
poderosa atuação de Orson Welles.
Contando ainda com diálogos mais urbanos, o que gerou certa polêmica na
época do lançamento, A Marca da Maldade é um relato cínico e violento sobre a
corrupção policial. No seu retorno a Hollywood após dez anos, Orson Welles
esbanja o seu requintado virtuosismo estético ao dar contornos expressivos a um
argumento oscilante e aparentemente requentado. Pra ser bem sincero, o que
poderia ter se tornado um filme falho e genérico nas mãos de qualquer outra,
nas mãos de Welles é transformado num dos suspenses 'noir' mais marcantes da
sua época.
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