quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Do Fundo do Baú (A Marca da Maldade)

Sob a batuta refinada do cultuado Orson Welles, A Marca da Maldade (1958) resume o impacto de uma inventiva direção na construção de um filme. Mesmo diante de alguns evidentes problemas narrativos, o "pai" do icônico Cidadão Kane eleva o nível deste instigante suspense 'noir' ao desfilar o seu vasto repertório de enquadramentos, planos sequências e movimentos de câmera ainda hoje expressivos. Responsável por uma das mais antológicas cenas de abertura da história da sétima arte, Welles esbanja o seu virtuosismo estético ao potencializar a atmosfera de tensão em torno da relação entre um idealista oficial mexicano e um inescrupuloso detetive norte-americano. A partir de temas como a moralidade e a ética policial, o realizador não só arquiteta um 'mise en scene' ágil e violento, como também nos brinda com um dos personagens mais ricos da sua carreira, o corrupto Hank Quinlan, um homem cínico e decadente que se torna a alma desta corrosiva película.



Adaptação do suspense homônimo escrito por Whit Masterson, A Marca da Maldade surpreende ao jogar o seu holofote no complexo antagonista. Indo de encontro às fórmulas do Cinema 'Noir', o argumento assinado pelo próprio Orson Welles decide apostar num protagonista bravo e idealista, um tipo heroico que parece não pertencer a este gênero. Por outro lado, o perverso Hank Quinlan é o porta voz deste cenário sujo e amoral. Um personagem decadente, por vezes ambíguo, que esconde na sua aparente superioridade uma personalidade frágil e preconceituosa. Através destes contrastantes protagonistas, Welles coloca o dedo na ferida ao questionar a popular teoria que os fins justificam os meios, escancarando a corrupção, o corporativismo policial e a imoralidade social ao revelar o 'modus operandi' deste ardiloso detetive. Não se engane, porém, com a aparente unidimensionalidade do antagonista. Impulsionado pela metamorfose física de Walles, que surge em cena obeso e cansado, o personagem revela traços naturalmente humanos, momentos sinceros que se tornam decisivos para a construção de algumas das mais marcantes sequências.


Na trama, prestes a iniciar a sua viagem de lua de mel, o policial mexicano Mike Vargas (Charlton Heston) é pego de surpresa ao presenciar um violento atentado na fronteira entre o México e os EUA. Ao lado de sua esposa Susan (Janet Leigh), ele é o primeiro a chegar ao local do crime e se coloca a disposição para contribuir na averiguação. Como a explosão aconteceu do lado americano, a investigação cai nas mãos do veterano detetive Hank Quinlan (Orson Welles), um respeitado policial com histórico de muitas detenções. Mesmo incomodado com a presença do oficial mexicano, ele é "cortes" e permite que Vargas participe dos interrogatórios. Aos poucos, no entanto, a postura "intuitiva" de Quinlan começar a levantar uma série de dúvidas na cabeça do mexicano, o que rapidamente se torna uma rixa entre os dois. Pra piorar, um influente mafioso latino (Akim Tamiroff) resolve entrar no "jogo" para impedir que Chavez participe de outro caso, um julgamento envolvendo um figurão da máfia, ameaçando não só a investigação, como também a vida da sua bela mulher.



Sob o ponto de vista narrativo, A Marca da Maldade se revela um suspense intrigante, mas oscilante. Como de costume em sua carreira, Orson Welles mostra perícia ao construir a atmosfera de tensão, permitindo que a trama se desenvolva com solidez da intensa sequência inicial até o intenso clímax. Amparado pela montagem picotada e pela atmosfera sombria, o realizador é igualmente habilidoso ao aproximar os dois lados desta trama. Por mais que o foco central esteja na relação entre Vargas e Quinlan, Welles consegue fazer um excelente uso dos personagens de apoio, principalmente da determinada Susan, do ardiloso Joe Grandi, da magnética Tanya (Marlene Dietrich, numa aparição especialíssima) e do errático Pete (Joseph Calleia), dando substância a uma premissa que não se revela tão inovadora. Nos momentos em que precisa alcançar a excelência, porém, o argumento vacila. Todo o ato final, por exemplo, é construído a partir de soluções frágeis e convenientes mudanças de atitude. Ainda que o processo de deterioração de Quinlan seja brilhantemente desenvolvido, a preparação para o último ato me pareceu forçada e um tanto quanto apressada. Além disso, apesar de absorver com vigor a honestidade do seu Vargas, Charlton Heston ganha uma aparência artificial que por vezes me distanciou do personagem. Pra piorar, alguns dos coadjuvantes são caricatos e\ou irritantes, com destaque (negativo) para o estranhíssimo recepcionista interpretado por Dennis Weaver. Por fim, inicialmente independente e corajosa, a promissora Susan é subaproveitada ao longo da segunda metade da película e fica reduzida a típica donzela indefesa. Uma pena, já que a enérgica Janet Leigh rouba a cena ao longo do primeiro ato.



No que diz respeito ao aspecto visual, no entanto, A Marca da Maldade figura entre as produções mais virtuosas da sua geração. Após uma década de "exílio profissional" na Europa, um afastamento motivado pelo seu temperamento forte e pelos seus constantes estouros de orçamento em Hollywood, o diretor ganhou uma nova chance neste suspense 'noir' e não decepcionou. Mesmo diante do limitado orçamento, Welles deu uma verdadeira aula ao exibir o seu vasto repertório de enquadramentos e movimentos de câmera. Já na icônica cena de abertura, um plano sequência de quase três minutos, ele absorveu a essência do termo suspense ao acompanhar um explosivo atentado automotivo. Num todo, aliás, Welles abre espaço para uma série de inspirados planos sequenciais, incrementando o 'mise en scene' narrativo ao acompanhar bem de perto o processo de investigação de Vargas e Quinlan. Em alguns momentos, inclusive, Welles se arrisca ao criar takes totalmente inovadores, entre eles a acelerada cena envolvendo um carro conversível em movimento. Além disso, mesmo nas sequências mais espontâneas, o realizador impressiona ao apostar em planos milimetricamente arquitetados, enquadramentos que parecem ter sido exaustivamente calculados tamanho requinte e profundidade. Impulsionado pela refinada fotografia de Russell Metty (Spartacus), Welles faz questão de enfatizar a relação entre a figura e o fundo, entre a luz e a sombra, realçando através dos seus expressivos ângulos a superioridade e a deterioração de Quinlan. Melhor ainda, aliás, é a construção da fantástica cena final, um elaborado clímax marcado pelos movimentos de câmera lateral, pela tensa montagem e pela poderosa atuação de Orson Welles.


Contando ainda com diálogos mais urbanos, o que gerou certa polêmica na época do lançamento, A Marca da Maldade é um relato cínico e violento sobre a corrupção policial. No seu retorno a Hollywood após dez anos, Orson Welles esbanja o seu requintado virtuosismo estético ao dar contornos expressivos a um argumento oscilante e aparentemente requentado. Pra ser bem sincero, o que poderia ter se tornado um filme falho e genérico nas mãos de qualquer outra, nas mãos de Welles é transformado num dos suspenses 'noir' mais marcantes da sua época.

Nenhum comentário: