Quando a simplicidade
narrativa se encontra com o virtuosismo técnico
Mais do que um arriscado exercício estético, Victória impressiona ao se
revelar um projeto capaz de colocar o seu virtuosismo artístico em prol do
entretenimento. Rodado sem um corte sequer, o vigoroso suspense dirigido por
Sebastian Schipper adota uma proposta ininterrupta ao acompanhar a improvável
relação de amizade entre uma deslocada imigrante espanhola e um grupo de
desajustados delinquentes juvenis. Indo de encontro à estrutura naturalista dos
projetos em plano sequência, o realizador alemão constrói um refinado 'mise en
scene', uma película marcada pela fluidez narrativa, pelos sufocantes
enquadramentos, pelo soberbo uso da iluminação e pelo absoluto entrosamento do
elenco. Além disso, por mais que a premissa possa soar implausível num primeiro
momento, Schipper investe num cuidadoso estudo de personagem, dando à
surpreendente Laia Costa os ingredientes necessários para uma performance
apaixonante e transformadora.
Simples e sucinto, o roteiro assinado por Eike Frederik Schulz, Olivia
Neergaard-Holm e pelo próprio Sebastian
Schipper é impecável ao construir a crescente atmosfera de tensão em torno
desta repentina amizade. Guiado por características comportamentais essencialmente
juvenis, entre elas a impulsividade e a inconsequência, o argumento acompanha
os passos da carente Victoria (Laia Costa), uma jovem espanhola recém chegada à
Berlim que parece não ter encontrado o seu lugar na capital alemã. Após uma solitária
noitada em uma agitada casa noturna, ela é abordada pelo extrovertido Sonne
(Frederick Lau), um jovem carismático que vivia de pequenos roubos ao lado dos
seus amigos Boxer (Franz Rogowski), Blinker (Burak Yigit) e Fusse (Max Mauff).
Sem parar para pensar nos perigos por trás desta aproximação, Victoria resolve
passar o resto da noite ao lado deles, criando um laço de cumplicidade à medida
que descobre o lado mais divertido e farrista do grupo. Atraída pelo charme de
Sonne, ela é convidada para participar de uma misteriosa reunião, sem saber que
a sua noite dos sonhos estava prestes a se tornar um enorme pesadelo.
Com direção e elenco em perfeito entrosamento, Victoria é primoroso
quando o assunto é o aspecto cênico. Mesmo limitado pela ausência de cortes,
Sebastian Schipper não se deixa levar pelo naturalismo dos planos sequências ao
criar um 'mise en scene' elaborado e milimetricamente calculado. Sem se prender
a um único cenário, o realizador alemão mostra pleno domínio da ação tanto nos
espaços internos (boate, hotel, bar), quanto no ambiente externo, e os explora
das mais variadas forma ao longo da película. Fruto de muito ensaio e
improviso, as cenas nos lugares fechados são intimistas, fluídas e magnificamente
orquestradas. Com intensidade e rigor estético, Schipper flutua com a sua
câmera em torno dos personagens com extrema naturalidade, nos presenteando com
enquadramentos elegantes e um inspirado uso da iluminação. A sensível sequência
do bar, por exemplo, é de um refinamento raríssimo, uma prova da consciência
dos atores no que diz respeito à demarcação e as intenções da cena. Quanto a
trama vai para o ar livre, no entanto, o diretor se distancia desta proposta
mais esquematizada ao valorizar a liberdade cênica e a interação entre os
membros do grupo. Fazendo um excelente uso do ponto de vista claustrofóbico, o
diretor resolve realçar a espontaneidade e o caos por trás das atitudes dos
protagonistas. No melhor estilo 'found foutage', Schipper adota recursos como a
câmera tremida e a constante mudança de foco, elementos que só potencializam a
tensão em torno da sufocante segunda metade do filme.
Esteticamente exemplar, Victoria se garante também quando o assunto é o
roteiro. Ainda que num primeiro momento as atitudes da protagonista soem um
tanto quanto implausíveis, o argumento é cuidadoso ao revelar não só os
motivos, como também as consequências por trás desta perigosa amizade,
adicionando novos elementos à medida que a relação entre os personagens ganha
substância. Inserido numa proposta extremamente realista, o interesse romântico
protagonizado por Victoria e Sonne é construído com espantosa sutileza,
permitindo que o espectador se afeiçoe pelo casal e os enxergue de maneira mais
franca. Melhor ainda, no entanto, é a objetividade do argumento ao preparar a
tão esperada reviravolta, principalmente no que diz respeito a postura da
solitária Victoria. Sem querer revelar muito, a maneira como a personagem reage
à atmosfera de tensão é surpreendente e totalmente coerente, assim como o denso
e doloroso último ato. Até em cima disso, aliás, é preciso elogiar também a fantástica
atuação de Laia Costa. Expressiva e carismática, a atriz espanhola torna crível
a inesperada transformação da sua Victoria, passeando com enorme expressividade
pelas nuances sentimentais da personagem. No mesmo nível da sua parceira de
cena, o talentoso Frederick Lau também se destaca com o seu Sonne, criando um
tipo capaz de ir do desajustado ao sensível com enorme categoria.
Não se engane com a aparente lentidão do primeiro ato. Ousado e
sufocante, Victoria é um thriller pulsante que nem de longe se resume a sua
estrutura sequencial. Na verdade, o trabalho do diretor Sebastian Schipper é
tão precioso, tão bem fotografado, que o espectador mais desavisado nem deve
perceber que está diante de um filme rodado em um único take de 2 h e 15 min. Sem
medo de errar, um dos trabalhos mais inventivos apresentados pelo cinema alemão
desde o vigoroso Corra, Lola, Corra (1998).
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