sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Victoria

Quando a simplicidade narrativa se encontra com o virtuosismo técnico

Mais do que um arriscado exercício estético, Victória impressiona ao se revelar um projeto capaz de colocar o seu virtuosismo artístico em prol do entretenimento. Rodado sem um corte sequer, o vigoroso suspense dirigido por Sebastian Schipper adota uma proposta ininterrupta ao acompanhar a improvável relação de amizade entre uma deslocada imigrante espanhola e um grupo de desajustados delinquentes juvenis. Indo de encontro à estrutura naturalista dos projetos em plano sequência, o realizador alemão constrói um refinado 'mise en scene', uma película marcada pela fluidez narrativa, pelos sufocantes enquadramentos, pelo soberbo uso da iluminação e pelo absoluto entrosamento do elenco. Além disso, por mais que a premissa possa soar implausível num primeiro momento, Schipper investe num cuidadoso estudo de personagem, dando à surpreendente Laia Costa os ingredientes necessários para uma performance apaixonante e transformadora. 



Simples e sucinto, o roteiro assinado por Eike Frederik Schulz, Olivia Neergaard-Holm e pelo próprio Sebastian Schipper é impecável ao construir a crescente atmosfera de tensão em torno desta repentina amizade. Guiado por características comportamentais essencialmente juvenis, entre elas a impulsividade e a inconsequência, o argumento acompanha os passos da carente Victoria (Laia Costa), uma jovem espanhola recém chegada à Berlim que parece não ter encontrado o seu lugar na capital alemã. Após uma solitária noitada em uma agitada casa noturna, ela é abordada pelo extrovertido Sonne (Frederick Lau), um jovem carismático que vivia de pequenos roubos ao lado dos seus amigos Boxer (Franz Rogowski), Blinker (Burak Yigit) e Fusse (Max Mauff). Sem parar para pensar nos perigos por trás desta aproximação, Victoria resolve passar o resto da noite ao lado deles, criando um laço de cumplicidade à medida que descobre o lado mais divertido e farrista do grupo. Atraída pelo charme de Sonne, ela é convidada para participar de uma misteriosa reunião, sem saber que a sua noite dos sonhos estava prestes a se tornar um enorme pesadelo. 


Com direção e elenco em perfeito entrosamento, Victoria é primoroso quando o assunto é o aspecto cênico. Mesmo limitado pela ausência de cortes, Sebastian Schipper não se deixa levar pelo naturalismo dos planos sequências ao criar um 'mise en scene' elaborado e milimetricamente calculado. Sem se prender a um único cenário, o realizador alemão mostra pleno domínio da ação tanto nos espaços internos (boate, hotel, bar), quanto no ambiente externo, e os explora das mais variadas forma ao longo da película. Fruto de muito ensaio e improviso, as cenas nos lugares fechados são intimistas, fluídas e magnificamente orquestradas. Com intensidade e rigor estético, Schipper flutua com a sua câmera em torno dos personagens com extrema naturalidade, nos presenteando com enquadramentos elegantes e um inspirado uso da iluminação. A sensível sequência do bar, por exemplo, é de um refinamento raríssimo, uma prova da consciência dos atores no que diz respeito à demarcação e as intenções da cena. Quanto a trama vai para o ar livre, no entanto, o diretor se distancia desta proposta mais esquematizada ao valorizar a liberdade cênica e a interação entre os membros do grupo. Fazendo um excelente uso do ponto de vista claustrofóbico, o diretor resolve realçar a espontaneidade e o caos por trás das atitudes dos protagonistas. No melhor estilo 'found foutage', Schipper adota recursos como a câmera tremida e a constante mudança de foco, elementos que só potencializam a tensão em torno da sufocante segunda metade do filme.


Esteticamente exemplar, Victoria se garante também quando o assunto é o roteiro. Ainda que num primeiro momento as atitudes da protagonista soem um tanto quanto implausíveis, o argumento é cuidadoso ao revelar não só os motivos, como também as consequências por trás desta perigosa amizade, adicionando novos elementos à medida que a relação entre os personagens ganha substância. Inserido numa proposta extremamente realista, o interesse romântico protagonizado por Victoria e Sonne é construído com espantosa sutileza, permitindo que o espectador se afeiçoe pelo casal e os enxergue de maneira mais franca. Melhor ainda, no entanto, é a objetividade do argumento ao preparar a tão esperada reviravolta, principalmente no que diz respeito a postura da solitária Victoria. Sem querer revelar muito, a maneira como a personagem reage à atmosfera de tensão é surpreendente e totalmente coerente, assim como o denso e doloroso último ato. Até em cima disso, aliás, é preciso elogiar também a fantástica atuação de Laia Costa. Expressiva e carismática, a atriz espanhola torna crível a inesperada transformação da sua Victoria, passeando com enorme expressividade pelas nuances sentimentais da personagem. No mesmo nível da sua parceira de cena, o talentoso Frederick Lau também se destaca com o seu Sonne, criando um tipo capaz de ir do desajustado ao sensível com enorme categoria.


Não se engane com a aparente lentidão do primeiro ato. Ousado e sufocante, Victoria é um thriller pulsante que nem de longe se resume a sua estrutura sequencial. Na verdade, o trabalho do diretor Sebastian Schipper é tão precioso, tão bem fotografado, que o espectador mais desavisado nem deve perceber que está diante de um filme rodado em um único take de 2 h e 15 min. Sem medo de errar, um dos trabalhos mais inventivos apresentados pelo cinema alemão desde o vigoroso Corra, Lola, Corra (1998).

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