A verdade por trás do
"sonho americano"
Devastadora, a crise no mercado imobiliário arruinou a vida de muitos
norte-americanos entre os anos de 2008-2009. Alguns poucos, no entanto,
lucraram fortunas com isso. É o que percebemos no intenso 99 Casas, um poderoso
thriller dramático estrelado pelos talentosos Michael Shannon (O Abrigo) e
Andrew Garfield (A Rede Social). Conduzido com forte teor crítico pelo diretor
Ramin Bahrani (Adeus), o longa escancara a "farra" das instituições
hipotecárias ao acompanhar a inesperada relação entre um desesperado pai de
família e um imoral agente imobiliário. Sob um ponto de vista quase documental,
o realizador não se contenta em capturar a dor e a revolta sentida pelas
famílias despejadas, permitindo que a trama passeie por temas mais complexos,
entre eles a ação inescrupulosa dos grandes bancos, o jogo de poder entre as imobiliárias e a
derrocada do ilusório "sonho americano".
Com roteiro assinado pelo próprio Bahrani, ao lado de Amir Naderi, 99
Casas é contundente e objetivo ao introduzir o drama de Dennis Nash (Garfield),
um jovem construtor que se perde meio a dívidas com a recessão norte-americana.
Sem ter a quem recorrer, ele é despejado da sua casa pelo bem sucedido Rick Caver
(Shannon), um agente imobiliário que enriqueceu ao "dominar" o
mercado imobiliário da região. Indignado com a situação, Nash é obrigado a se
mudar para um hotel barato ao lado da sua mãe Lynn (Laura Dern) e do seu filho
Connor (Noah Lomax). No fundo do poço, o desesperado pai de família é pego de
surpresa ao receber uma oferta de emprego do seu algoz Rick, um
"bico" indigesto que nenhum dos seus empregados queria fazer.
Inicialmente incrédulo, ele resolve aceitar a oferta do corretor, sem saber que
dali nasceria uma relação capaz de mudar sua rotina de uma vez por todas.
Impulsionado por esta instigante premissa, Ramin Bahrani exibe um forte
teor crítico ao investigar as mazelas impostas por esta desoladora crise. Sem
tempo a perder, o realizador norte-americano constrói um avassalador primeiro
ato e em pouco menos de meia hora introduz os conflitos dos personagens com
extrema clareza. Com cortes secos e uma câmera quase documental, Bahrani é
impecável ao costurar os caminhos de Dennis e Rick, permitindo que o espectador
experimente não só o misto de emoções enfrentado pelo protagonista diante do
iminente despejo, como também o repentino caminho de bonança apresentado por
esta figura imoral. Por mais que soe conveniente num primeiro momento, a
relação entre os dois só eleva o patamar da trama ao longo do segundo ato,
principalmente quando o realizador decide explorar os conflitos morais por trás
da ascensão financeira do jovem. É com base nesta aproximação profissional,
aliás, que Bahrani encontra os ingredientes necessários para colocar em cheque
o idealizado conceito do "sonho americano", evidenciando com
franqueza as verdadeiras "etapas" por trás da tão cobiçada ascensão
social.
Melhor ainda, no entanto, é a maneira intimista e pontual com que o realizador
traduz a dor das famílias devastadas pela crise imobiliária. Sem nunca perder o
foco, Bahrani provoca indignação ao reproduzir com zelo a situação dos
despejados e o impacto da recessão na rotina do cidadão comum. À medida que
desvenda o drama dos norte-americanos, inclusive, o realizador oferece a
sustentação necessária para os crescentes conflitos de Dennis, expondo através
deles os interesses escusos em torno do 'modus operandi' dos agentes
imobiliários. Na hora de tirar o 10, porém, 99 Casas se rende a um reduzido
clímax. Mesmo diante de temas tão complexos, Bahrani opta por simplificar as
coisas ao colocar o protagonista no centro de um dilema moral pessoal e
conveniente. Apesar de coerente com a proposta crítica do longa, o último ato é
condescendente ao "amarrar" a crise de consciência de Dennis,
investindo num clímax mais sentimental e reflexivo. Menos mal que, numa atuação
primorosa, Andrew Garfield consegue absorver as contrastantes nuances emocional
do protagonista com enorme sutileza, indo do desespero à ganancia com absoluta
categoria. O mesmo, aliás, acontece com Michael Shannon, que rouba a cena com o
amoral Rick Claver. Numa trabalho estupendo, o ator cria um tipo único, uma
figura capaz de revoltar sem parecer maniqueísta ou unidimensional. Quando
necessário, inclusive, Shannon adiciona uma surpreendente dose de humanidade ao seu
personagem, evidenciando através de diálogos francos a realidade por trás do
voraz mundo dos negócios.
Indo de encontro ao tom ácido do primoroso A Grande Aposta, 99 Casas investe numa abordagem mais pessoal ao acompanhar o impacto da crise imobiliária na rotina dos EUA. Com base num tema tão trágico, Ramin Bahrani é impecável ao construir um suspense da vida real, uma obra capaz de entreter sem abrir mão do pano de fundo crítico. Ainda que o último ato não esteja à altura dos dois primeiros terços da trama, o longa cumpre a sua missão enquanto "soco no estômago" e mostra propriedade ao revelar uma faceta da America que a "grande Hollywood" ainda resiste em explorar.
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