sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

Michael Keaton volta a "voar" nesta ácida e vibrante critica sobre os bastidores de Hollywood

Atores, indústria, críticos, espectadores, ninguém passa impune pela poderosa e original critica proposta por Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), um relato vigoroso sobre o egocentrismo em torno das estrelas de Hollywood. Conduzido com grande inspiração por Alejandro González Iñarritu (21 Gramas e Babel), esta ácida e excêntrica comédia dramática empolga não só por seu surpreendente rigor técnico, pela irresistível metalinguagem e pelas soberbas atuações, mas principalmente por sua ousadia ao questionar a banalização do sucesso num mercado obcecado por blockbusters, fenômenos virtuais e pelo culto à efêmera figura da celebridade. Se concentrando na jornada de um decadente ator marcado por um super-heroico personagem do passado, Iñarritu encontra no arrebatador Michael Keaton o nome perfeito para dar vida ao insano e obstinado Riggan Thompson. Um ator que, tal o seu personagem, sentiu na pele os altos e baixos em torno da voraz busca por reconhecimento dentro da indústria do entretenimento.




Atirando para todos os lados, e sendo aclamado por isso, Birdman promove tantas discussões que torna difícil a nossa missão de resumi-lo em poucos parágrafos. Ainda que se concentre nesta análise da personalidade de uma decadente estrela do cinema, o argumento assinado por Inarritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris e Armando Bo abre espaço para uma série de questionamentos sobre os bastidores de Hollywood, a maioria deles envolvendo a exaltação dos excêntricos métodos de atuação, a vaidade dos atores, o esvaziamento da crítica, a valorização das celebridades instantâneas e a banalização midiática. Sem meias palavras, sobra até para o espectador e para a nossa responsabilidade como consumidor diante da popularização destas grandes franquias. No epicentro destes julgamentos, porém, está Riggan Thompson (Keaton), um ator de passado glorioso que tenta se livrar da sombra do tal Birdman, um popular personagem que o persegue há vinte anos. Convivendo frequentemente com a voz deste super-herói, numa espécie insistente de alter-ego, Riggan resolve comprovar o seu talento como ator ao dirigir e estrelar uma peça "cabeça" na Broadway. As coisas, no entanto, saem do controle quando um dos protagonistas é ferido, sendo substituído pela afetada e complicada estrela dos palcos Mike Shinne (Edward Norton). Apesar de inicialmente aumentar a popularidade em torno da peça, o novo ator se transforma num empecilho para Riggan, criando problemas não só por sua difícil convivência, mas principalmente por tentar ofuscar a presença desta estrela de cinema. 


Explorando com perícia a metalinguagem em torno da trama, Iñarritu impressiona pelo rigor técnico com que nos conduz pela rotina deste ator ao longo de três dias. Fugindo completamente da previsibilidade, o realizador ousa ao apostar na continuidade, rodando o longa como se fosse um gigantesco plano sequência. Contando com o apoio luxuoso do diretor de fotografia Emmanuel Lubezki, vencedor do Oscar por Gravidade, o longa é impecável ao simular estes takes, explorando o que de melhor este recurso tem a oferecer. Na verdade, através de imperceptíveis cortes de cena, Iñarritu utiliza o próprio posicionamento do elenco para esconder a fluida edição. Por mais que esta opção se mostre excessiva em poucos momentos, perseguindo os atores com uma urgência exagerada, o resultado final se torna altamente satisfatório, permitindo que os acontecimentos se desenvolvam como uma espécie de teatro filmado. Além disso, Iñarritu mostra desenvoltura ao reproduzir os "superpoderes" de Riggan, funcionais tanto no aspecto visual, a cena em que Birdman usa o cinema de ação para tentar convence-lo é espetacular, quanto no narrativo, já que o roteiro é sagaz ao alimentar o benefício da dúvida em torno da existência destas habilidades. Em meio aos impressionantes voos de Keaton pelas ruas de NY e a onipresente figura do herói fantasiado, a criatividade do diretor potencializa também algumas das críticas mais incisivas. Numa delas, após caminhar exposto pelas ruas da Broadway, passando pelo crivo popular tal como uma foto postada em uma rede social, Riggan se surpreende ao ver que um homem de cueca atrai mais público do que uma peça de teatro. 


Flertando de maneira inventiva ora com o fantástico, ora com o humor, ora com o drama, Iñarritu é brilhante ao alimentar a tensão em torno da jornada de Riggan. Ainda que os bastidores da peça sejam explorados de forma irresistível, focando não só na rotina de ensaios, mas também na relação vaidosa do elenco, é através dos dilemas internos do protagonista que a trama busca se diferenciar. Além de abordar a problemática relação do ator com a filha e assistente Sam (Emma Stone), uma jovem ressentida pelo distanciamento paterno, o longa é impecável ao conduzir o seu processo de degradação emocional. À medida que os problemas em torno da peça vão se aflorando, Riggan passa a ter um comportamento cada vez mais surtado, acreditando que realmente possui os sobrenaturais poderes do ex-personagem. Frequentemente atormentado pela voz de Birdman, que surge em cena para ilustrar a sua decadente nova realidade e tentar convence-lo a voltar à heroica franquia, o ator passa a colocar a sua própria identidade em cheque, deixando o ego falar mais alto quanto a necessidade de ser lembrado pela crítica. Utilizando a cultura pop como um peculiar pano de fundo, Iñarritu aponta o seu dedo diretamente para Hollywood, questionando não só os atores que se supervalorizam ao negar a sua própria veia comercial, mas também a crítica que ainda cisma em subvalorizar os protagonistas dos (bons) blockbusters. Um julgamento que poderia até parecer datado, mas que se valida quando percebemos que um ator de comédia e\ou filmes de ação geralmente só é reconhecido quando interpreta um papel dramático.  


E aqui devemos destacar a inestimável presença de Michael Keaton. Escolhido a dedo por Iñarritu, Keaton traz ao personagem a sua própria experiência com o ostracismo. Se despindo completamente da vaidade, sem qualquer tipo de maquiagem ele carrega dignamente o peso da idade, Keaton impressiona ao capturar as insanas nuances deste ator decadente. Indo do drama à comédia com uma arrebatadora energia, o ator é também o responsável pela voz grave de Birdman, empolgando através dos transtornados e irônicos diálogos entre Riggan e o seu alter-ego. Se Keaton é o "herói", a função de antagonista é conduzida com brilhantismo por Edward Norton. Considerado um ator de temperamento complicado, Norton faz de Mike um intragável representante do método, e através das peculiaridades deste estilo monta um personagem pedante e traiçoeiro. Por outro lado, Emma Stone constrói uma adorável e carente Sam. Com o seu olhar sempre expressivo, a atriz desenvolve uma envolvente química com Keaton, se tornando uma espécie de ligação com o mundo atual. Em meio ao proposital exagero do argumento, é na relação entre pai e filha que Iñarritu abre espaço para as sequências mais densas, menos urgentes, mas não menos intensas, atribuindo à jovem atriz a conexão com este mundo virtual movido pelas redes sociais. Completam o poderoso elenco a carismática Naomi Watts, impecável como uma atriz de baixa estima, Zack Galfianakis, hilário como o interesseiro produtor, e a pontual presença de Lindsay Duncan, extremamente seca no papel de uma vazia crítica. 


Aliando ousadia narrativa à ambição estética, Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) se arrisca ao conceber uma bem vinda crítica ao atual cenário da indústria do entretenimento. Em sua primeira investida dentro da comédia, o diretor mexicano Alejandro González Iñarritu promove uma ode a excentricidade e ao realismo fantástico, utilizando os devaneios de um ator decadente para apontar a sua furiosa mira contra - principalmente - os excessos e os egos inflados dos bastidores de Hollywood. Recheado de diálogos inteligentes e de simbólicos dualismos, que incentivam a rivalidade entre o teatro e o cinema, a arte e o dinheiro, a realidade e a ficção, esta comédia dramática indicada a nove estatuetas do Oscar encontra na entrega de Michael Keaton a verdadeira força motora desta poderosa crítica. Um ator que, após viver sob a inevitável sombra do Homem Morcego, ganhou no Homem Pássaro uma chance de conseguir dar um novo voo rumo às grandes premiações.

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