Se concentrando no processo de construção de um dos maiores mitos em torno do carnaval do Rio de Janeiro, o diretor Paulo Machline (Natimorto) faz de Trinta um relato inspirador sobre as origens e a formação de João Clemente Jorge Trinta, o popular Joãozinho Trinta. Evitando se prender aos momentos mais celebrados da vida profissional deste carnavalesco, oito vezes campeão à frente do Salgueiro, da Beija Flor e da Viradouro, o longa aposta num recorte empolgante envolvendo a sua formação cultural, o início de sua carreira como bailarino do Teatro Municipal e também o seu detalhismo na produção do primeiro carnaval dentro da escola de samba Tijucana. Empurrado pela avassaladora atuação de Matheus Nachtergaele (O Auto da Compadecida), Machline promove uma ousada e expressiva mistura de Samba e Música Erudita para evidenciar o talento do "gênio dos enredos".
Apostando numa direção de arte realmente fantástica, capaz de transportar o público para uma era bem mais artesanal do Carnaval Carioca, Paulo Machline captura com paixão e vigor toda a originalidade presente no trabalho de Joãozinho Trinta. Demonstrando cuidado ao apresentar o processo de concepção e desenvolvimento do enredo "O Rei de França na Ilha da Assombração", um dos principais marcos na carreira do carnavalesco, o roteiro assinado pelo próprio diretor, ao lado de Maurício Zacharias, retrata com certa plenitude os principais traços de sua genialidade, ressaltando as barreiras que ele precisou superar para conduzir o seu primeiro carnaval e o pioneirismo de um profissional disposto a fazer história através do luxo e da criatividade. Fazendo um bom uso da narrativa não linear, pouco a pouco vamos conhecendo como aquele homem franzino, que chegou ao Rio de Janeiro com o sonho de ser bailarino, acabou se tornando uma das figuras mais fortes e respeitadas dentro deste competitivo universo. E essas dificuldades, diga-se de passagem, só ganham mais peso graças a preocupação do roteiro em enfatizar a personalidade determinada de Joãozinho Trinta.
Por mais que a trama tenha a nítida preocupação em destacar a genialidade profissional do carnavalesco, Machline mostra nas entrelinhas como as suas próprias escolhas, a maioria delas à frente do seu tempo, o prepararam para brilhar. Mesmo sem se aprofundar na vida pessoal, o roteiro é sútil ao discutir não só o preconceito envolvendo a sua sexualidade, como também as dúvidas e questionamentos motivados pela sua falta de experiência na produção do seu primeiro carnaval no Salgueiro. Realçando as quedas de braço de Joãozinho Trinta para tirar as suas ideias do papel, o argumento ganha contornos ainda mais interessantes quando evidencia como a sua infância humilde no Maranhão foi fundamental para ele desenvolver o primeiro enredo, ou então como a discriminação dos tempos de bailarino o tornou uma pessoa mais calejada. Na tentativa de unificar esses problemas, no entanto, os roteiristas derrapam ao apostar na preguiçosa figura do antagonista, um ficcional diretor de barracão vivido pelo talentoso Milhem Cortaz. Nada que estrague o resultado final, principalmente pela estupenda atuação de Matheus Nachtergaele. Reproduzindo a tensão em torno da construção do seu enredo, o experiente ator brilha intensamente em cena, indo do dócil ao obcecado com naturalidade. Com destaque para impagável cena em que o estressado Joãozinho resolve distribuir palavrões no barracão. Nachtergaele, aliás, é acompanhado de perto pelos bons desempenhos de Fabrício Boliveira, à vontade como o malandro de bom coração Calça Larga, por Paulo Tiefenthaler, impecável como o carnavalesco Fernando Pamplona, e por Marco Ricca, numa rápida, porém intensa participação.
A cereja do bolo, no entanto, fica pelo cuidado de Paulo Machline ao reproduzir os bastidores do Carnaval na década de 1970. No ritmo da ousada trilha sonora composta por André Abujamra, que foge totalmente dos clichês ao misturar com inspiração samba e música clássica, o longa se preocupa não só em explorar o lado mais irreverente da personalidade de Joãozinho Trinta, mas também o aspecto romântico em torno do carnaval daquele período. Com destaque para a forma como recria a disposição dos componentes na confecção das fantasias, a escolha do samba enredo, a figura do "bicheiro" patrono de uma agremiação, enfim, toda a tradição por trás da raiz do carnaval carioca. Opções que só contribuem para que Trinta se torne um relato completo, vibrante e universal, capaz de agradar tanto o folião mais convicto, como àqueles que procuram se esconder num cinema durante esta festa popular. Numa época em que alguns afirmam que o "brasileiro é um povo sem memória", é muito legal ver que o cinema resolveu tentar mudar este panorama através de cinebiografias de alto nível, com destaque para Getúlio, Tim Maia e, agora, Trinta.
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