sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Boyhood - Da Infância à Juventude

Quando a ousadia de um realizador se encontra com a simplicidade de uma história

Rodado ao longo de doze anos, Boyhood - Da Infância a Juventude é um daqueles impecáveis trabalhos que merecem ser apreciados. Acompanhando o crescimento do ator Ellar Coltrane dos 6 aos 18 anos, opção que inegavelmente atribui uma aura de raridade ao projeto, o diretor Richard Linklater foge completamente dos clichês ao narrar a jornada de amadurecimento do jovem Mason. Explorando as fluidas 2 h e 40 de projeção, o realizador nos surpreende ao não só se concentrar neste retrato maduro e cativante sobre uma família norte-americana, mas por se preocupar em nos guiar através das mudanças culturais, políticas e comportamentais que também marcaram este período. Na contramão dos grandes blockbusters, produzidos em escala quase industrial por Hollywood, Linklater usa o tempo como um aliado estético e narrativo, se apropriando com primor das noções de passado, presente e futuro.


Inovando ao capturar as transformações físicas dos seus protagonistas, que envelhecem em cena quase num passe de mágica, Linklater correu grande risco ao conceber este projeto único e extremamente original. Sem grandes cifras ou qualquer tipo de garantia contratual, ele simplesmente escolheu o seu quarteto principal e resolveu reunir o elenco a cada um destes doze anos, construindo pouco a pouco este expressivo drama familiar. Em meio as incertezas sobre o futuro do longa, já que em caso de uma desistência a obra literalmente não sairia do papel, o diretor encontrou na entrega de Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke e de sua filha Lorelei Linklater uma garantia do impacto positivo que esta obra viria a ter quando concluída. E o resultado final, sem sombra de dúvida, valeu cada ano deste esforço. O que mais impressiona, no entanto, é que Boyhood nem de longe se resume a "metamorfose" de seus personagens. Na verdade, este fascinante esforço para registrar o envelhecimento dos atores só contribuiu para a excelente história, dando ainda mais peso e realidade a esta jornada em busca do amadurecimento. 



Fugindo completamente dos clichês que geralmente cercam o gênero, o roteiro também assinado por Linklater opta por dar a mesma importância a todos os dilemas de Mason, evitando o naturalismo excessivo. Desde os conflitos mais tolos de sua infância, como as birras com a espevitada irmã Samantha (Lorelei Linklater), às questões mais sóbrias da fase adolescente, como os embates com os padrastos e o seu nítido distanciamento social, todas estas situações são exploradas com a mesma profundidade, dando contornos contemplativos a jornada do jovem. Ainda que os temas mais batidos sejam explorados nas entrelinhas, como a descoberta sexual e as questões envolvendo o uso de álcool e drogas, é no desenvolvimento da personalidade Mason que o longa parece se concentrar. E aqui, Linklater é brilhante ao mostrar o impacto da separação na criação de um filho. Evidenciando a nocividade deste processo, principalmente em função do péssimo tato da mãe (Patricia Arquete) para escolher um marido, o realizador recria com precisão a dinâmica da atual estrutura familiar, revelando com paciência e soluções nada simplórias as idas e vindas dos personagens. Melhor ainda, aliás, é a sinceridade com que o argumento mostra como as mudanças, as brigas e as novas rotinas podem confundir a cabeça de uma criança, influenciando diretamente no processo de construção de sua identidade.


Apesar de ser apresentado como uma criança normal, que gosta de andar de bicicleta, jogar vídeogame e assistir DBZ, não precisamos de muito para perceber a consequência destes problemas na vida de Mason. Contando com a intensa atuação de Ellar Coltrane, que funciona tanto na fase "kid", quanto na adolescente, o roteiro é impecável ao construir a relação com os pais e a forma como a conduta deles moldaram a sua personalidade. Enquanto a independente mãe fica com as decisões mais negativas, até porque ela se torna a responsável pela criação, é o idealista e descolado pai, numa vigorosa atuação de Ethan Hawke, o exemplo máximo para Mason. Em meio aos reflexivos diálogos, quase sempre marcados pela franqueza e bom humor, o jovem encontra nele a figura a ser seguida. Um personagem que, diga-se de passagem, é desenvolvido de maneira ímpar por Linklater, rendendo momentos afetuosos e divertidos. Isso, no entanto, não significa dizer que a figura materna fica em segundo plano. Apostando no talento de Patricia Arquette, de volta às grandes produções, o diretor nos apresenta a uma mulher independente, que toma as rédeas de sua vida, explorando até com maior cuidado os seus romances e inseguranças. Ainda que se concentre no ponto de vista de Mason, a trama abre um interessante espaço para estes dois fortes personagens, mostrando gradativamente - e sem qualquer tipo de julgamento - os motivos que os levaram ao rompimento. Ao destacar as diferenças entre os dois, inclusive, Linklater comprova que, perante a complexidade da vida, nem sempre o casamento significa estabilidade ou o afastamento seja necessariamente um sinônimo de ausência.


Em meio às discretas passagens de tempo, quase imperceptíveis apesar das nítidas mudanças físicas dos personagens, Linklater usa fatos e tendências importantes deste período para guiar o espectador ao longo da trama. Apostando numa eclética e extremamente popular trilha-sonora, com destaque para a interpretação da carismática Lorelei Linklater para o hit "Ops I Did It Again", o diretor não só faz referências a fenômenos culturais e comportamentais como Harry Potter, Crepúsculo e a onda EMO, como também se apega as questões politicas, contextualizando o espectador durante o crescimento do jovem. A cena em que Mason é expulso de um quintal ao tentar fazer uma campanha pró-Obama, sem dúvida alguma, é um dos momentos mais divertidos do longa. De forma um pouco mais sutil, aliás, é nítido como esta dualidade entre os democratas e os republicanos acaba sempre rondando a trama, se refletindo na personalidade dos seus personagens. Enquanto os pais de Mason, cultos e compreensivos, levantam uma bandeira mais liberal, outras figuras importantes mostram o seu conservadorismo através de atitudes autoritárias e retrógradas, evidenciando um aspecto mais enraizado da cultura norte-americana. Um questionamento que se mantém nas entrelinhas, ora com tons mais divertidos, ora mais incisivos, diferenciando sempre a nova da velha estrutura familiar.


Apesar da fase mais adulta de Mason se mostrar levemente prolixa, Boyhood - Da Infância à Adolescência é - acima de tudo - um retrato universal, tocante e apaixonante sobre uma família comum, tal como a sua ou a minha. Embalado pela iluminada fotografia de Lee Daniel e Shane F. Kelly, Richard Linklater surpreende não só pelo ousado processo de filmagem, mas principalmente pela simplicidade com que atribui uma aura quase sublime a temas e situações sabidamente rotineiras. Ainda que o argumento se concentre na busca da identidade\maturidade de um jovem, este comovente drama comprova que o amadurecimento não aparece com a idade, nem com o tempo, mas sim com as atitudes.

3 comentários:

Hugo disse...

Estou curioso para conferir.

Abraço

thicarvalho disse...

Um filme extremamente único Hugo. Diferente da maioria das coisas que vemos por ai. Abs.

thicarvalho disse...

Um filme extremamente único Hugo. Diferente da maioria das coisas que vemos por ai. Abs.