Um dos mais impressionantes retratos sociais do Brasil, O Pagador de Promessas é um daqueles trabalhos inestimáveis para o cinema Mundial. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o longa dirigido por Anselmo Duarte captura de forma única a essência da sociedade brasileira. Apostando em uma linguagem altamente crítica e no poderoso time de atores, o filme da década de 1960 é uma prova viva que a nossa sociedade pouco mudou desde então. Destacando o cinismo e o sensacionalismo frequentemente presente no noticiário nos últimos anos, e - de certa forma - no nosso dia a dia, este clássico do cinema nacional é uma obra necessária dentro de um período marcado pela criminalidade, por "justiceiros", "black blocs" e pela corrupção.
"O homem nasce bom, a sociedade que o corrompe." Confesso que nunca acreditei muito nesta citação do filósofo Jean-Jacques Rousseau. Ela, no entanto, resume muito bem o teor de O Pagador de Promessas. Com roteiro assinado pelo próprio Anselmo Duarte, baseado no clássico de Dias Gomes, o longa narra a saga do inocente Zé do Burro (Leonardo Villar). Um homem do campo, casado com a bela Rosa (Glória Menezes), que fez uma promessa à Santa Barbara. Caso o seu burro de estimação se recuperasse de um grave ferimento, ele iria a Igreja de Santa Barbara levando uma cruz nas próprias costas. Quase por milagre o animal se recupera, o que faz Zé do Burro, ao lado de sua esposa, partir para a Igreja. Os dois, porém, acabam chegando ao local no meio da madrugada. Com a igreja fechada, o casal cruza o caminho do cafetão Bonitão (Geraldo Del Rey), um boêmio explorador de mulheres que logo se interessa por Rosa. Na verdade, esse se torna somente o primeiro problema enfrentado por Zé do Burro, já que com a chegada do pároco da Igreja ele se depara com um inesperado obstáculo. Ao contar a sua história para o padre Olavo (Dionísio Azevedo), Zé revela que fez a promessa em um terreiro de Candomblé, até porque em sua cidade não existia uma Igreja para Santa Barbara. Acreditando que essa atitude seria contra os ideais da Igreja Católica, o pároco impede a entrada da cruz no templo. Disposto a ir até as últimas consequências, Zé do Burro acaba esbarrando em uma série de oportunistas que criam uma equivocada comoção em torno do seu caso.
Promovendo uma elaborada crítica em torno da intolerância religiosa, O Pagador de Promessas é acima de tudo um retrato cru e extremamente atual da nossa sociedade. Colocando em cheque o sensacionalismo presente no nosso modo de vida urbano, a adaptação é habilidosa ao construir o processo de corrupção moral que cerca o inocente Zé do Burro. Fazendo um primoroso uso da detalhista direção de arte e dos excelentes diálogos, o longa flutua com primor entre os gêneros, apresentando carismáticos e bem desenvolvidos personagens. Com destaque para o poeta popular Dedé (Roberto Ferreira), o Capoeirista Coca (Antônio Pitanga) e o galego (Gilberto Marques), todos aproveitados com eficiência ao longo da película. O grande destaque do roteiro, no entanto, fica pela maneira gradativa com que a história se desenvolve, culminando num clímax intenso e impactante. Muito disso, é verdade, graças a grande atuação de Leonardo Villar, impecável ao absorver o turbilhão de emoções enfrentados pelo seu Zé do Burro. Inicialmente inocente e dócil, o protagonista cresce à medida que se depara com inesperados obstáculos, revelando toda a sua indignação na tentativa de pagar uma singela e aguardada promessa. Ele, aliás, é acompanhado de perto pela complexa Rosa, brilhantemente interpretada por Glória Menezes. Uma mulher do interior, aparentemente insatisfeita com o seu modo vida, que reluta entre o charme do controverso Bonitão e as boas intenções do seu marido Zé do Burro.
E esse é apenas um dos muitos dilemas levantados em O Pagador de Promessas, uma obra que, apesar do visual em preto e branco e das deficiências sonoras, se mostra um trabalho incrivelmente atual. Conseguindo capturar a essência dos problemas sociais brasileiros, o filme de 1962 é uma daqueles relatos que teimam em não ficar datados. Pelo contrário, já que muitos dos dramas que cercam o inocente Zé do Burro são os mesmos ainda hoje enfrentados por grande parte da nossa sociedade. Assistam e digam se estou mentindo. Uma baita dica para os fãs da sétima arte.
2 comentários:
Com certeza entraria no meu top ten de filmes brasileiros.
Abraço
Sem dúvidas Hugo... Está entre um dos melhores filmes que já assisti.
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