sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Crítica | Deixe a Neve Cair

Estupidamente doce, insuportavelmente vazio

Pegue um punhado de personagens desinteressantes. Os coloque num brega cenário natalino. Preencha tudo com uma enxurrada de clichês, sentimentalismo barato e dilemas superficiais. Essa é a fórmula que explica o desastre chamado Deixe a Neve Cair. Um filme que se esforça demais para soar feliz, desconstruído, descolado. Só que, para isso, sacrifica por completo o fator naturalidade. Adaptação do conto homônimo do popular escritor John Green, a produção original Netflix dirigida por Luke Snellin (Wanderlust) frustra ao se contentar em tratar os seus jovens personagens como meros arquétipos, esvaziando o sopro de humor da premissa em prol de uma genérica mensagem edificante, relacionamentos vazios e um insuportavelmente doce clima de romance. 

Embora não me considere parte do público alvo de John Green, um dos grandes trunfos das suas adaptações para o cinema está na universalidade do seu texto. Ele sabe identificar as agruras geracionais do seu leitor. Ele os entende. Compreende os seus medos, as suas frustrações, as suas inseguranças. E por isso dialoga com todos os públicos. Em Cidades de Papel, por exemplo, é fácil se reconhecer no trio de protagonistas. Existe uma atemporalidade que faz todo o sentido. No fim, tal qual os melhores filmes de John Hughes, tudo se trata da jornada. Do amadurecimento. Um traço de qualidade que, infelizmente, passa longe de existir em Deixe a Neve Cair. Mesmo com um começo promissor, principalmente por dar a entender que se concentraria nos percalços de um jovem DJ (o ótimo Jacob Batalon) disposto a tudo para tirar do papel uma festa na véspera de Natal, Luke Snellin renega a chance do seu filme soar minimamente ‘cool’ ao ampliar o escopo da trama. O que vemos então são uma série de personagens ocos, alguns irritantes, com conflitos fúteis e\ou clichês unidos por um argumento repleto de momentos “vergonha alheia”. Sério, poucos filmes neste ano apresentaram um conjunto de diálogos tão fracos quanto Deixe a Neve Cair. O humor inexiste. O drama é raso. Não existe química entre a maior parte dos protagonistas. Não existe paixão. Não existe nada que nos lembre que estamos diante de jovens. Tudo é muito quadrado, muito conservador, muito previsível. O roteiro é bem mais “imaturo” que os próprios personagens.


Na ânsia de ampliar o número de protagonistas, Luke Snellin patina no escorregadio terreno do sentimentalismo ao não conseguir desenvolver satisfatoriamente nenhum dos seus arcos. O problema não está na vibe ‘feel good’. Está na completa falta de tempero narrativo\dramático. O que era para ser uma história de amor espontânea, por exemplo, como a relação entre uma solitária jovem (Isabela Merced) e uma deslocada estrela da música (Shameik Moore), ganha contornos forçosamente lacrimosos devido ao ‘background’ familiar dela. O que era para ser uma relação mais fofa e divertida, como o improvável triângulo amoroso entre os amigos de infância Tobin (Mitchell Hope) e Duke (Kiernan Shipka), perde força devido a incapacidade do roteiro em explorar o desconforto dos dois diante de um sentimento reprimido. O que era para ser um pseudo estudo sobre a face mais exibicionista\artificial dos ‘millennials’, ganha contornos risíveis graça a total falta de paciência do realizador em realmente entender a insegura Addie (Odeya Rush). Ao invés de se aprofundar no que se propõe, por mais raso que tudo pudesse soar, Snellin pega uma série de atalhos narrativos ao preencher o arrastado longa com aleatórias sequências musicais (o eclético setlist é uma bagunça), montagens com um grau de sentimento digno de um comercial de margarina e uma enxurrada de soluções piegas\requentadas. Até o clichê da mulher esquisita mentora, como a “velha dos pombos” de Esqueceram de Mim 2, tem a sua vez aqui. E assim, entre beijos sem sal, diálogos frouxos e gatilhos narrativos batidos, Deixe a Neve Cair caminha tentando ser o mais desconstruído possível. Tem trilha sonora ‘indie’, tem casal LGBT, tem empoderamento, tem mensagem de autoajuda, tem até uma “bizarra” celebração natalina ecumênica.


O pior é que, em meio a tantos problemas, é fácil enxergar o potencial subaproveitado do longa. Ao contrário do sofrível elenco de apoio, que beira o nível teatro amador em algumas cenas, o jovem time de protagonistas é carismático e talentoso. O grande ladrão de cenas dos dois novos Homem-Aranha do MCU, Jacob Batalon (quando está em cena) consegue trazer sozinho um pouco de humor\senso de diversão ao longa. O mesmo, aliás, podemos dizer da magnética Odeya Rush (Goosebumps), que, mesmo limitada pela sua péssima personagem, consegue adicionar a ela um ar maluquinho bem agradável. Impressiona, na verdade, a incapacidade do original Netflix em extrair algo verdadeiramente sincero de nomes como os de Shameik Monroe e Kiernan Shipka, uma dupla que, em títulos como Dope e Mad Men, já mostrou ter muito mais a oferecer do que o visto aqui. Talvez a melhor das surpresas da película, coube a Liv Hewson a responsabilidade de interpretar a única personagem tridimensional do longa. E ela se sai muitíssimo bem. Na pele da garçonete Dorrie, a promissora atriz entrega um tipo com nuances próprias, uma jovem lésbica obrigada a conviver com as grosserias da sua acuada “crush” durante a véspera de Natal. De longe o arco mais interessante do filme, a conflitante relação entre as duas merecia uma atenção muito maior do roteiro, principalmente por se revelar o elemento mais honesto da trama. Além disso, Luke Snellin mostra uma assinatura visual bastante vistosa, extraindo a beleza do gélido cenário com enquadramentos elegantes e uma palheta de cores que parece realçar a bem-vinda diversidade do seu elenco. 


No fim, Deixe a Neve Cair se revela o tipo de obra que quer parecer feliz, moderna, descolada, mas que só é ‘fake’ e vazia. Tal qual a realidade “vendida” em muitos perfis do Instagram. Falta a dramédia natalina de Luke Snellin pulso, interesse pelo drama da juventude atual, humor, aura ‘teen’ e principalmente verdade. Uma obra que pode até encontrar eco junto àqueles que compartilham esta visão de mundo recheada de filtros, mas que tende a ser cansativa para qualquer um que tenha crescido assistido às pérolas geracionais de John Hughes. Ou qualquer adaptação recente do próprio John Green.

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