sábado, 2 de fevereiro de 2019

Crítica | Velvet Buzzsaw

Uma (sangrenta e egocêntrica) noite no museu

Historicamente, o mundo dos grandes pintores sempre teve um quê autodestrutivo. Eu diria até mórbido. Quantos célebres artistas clássicos morreram sem experimentar o sucesso? O prazer do reconhecimento? Van Gogh, Monet, Vermeer, Gauguin. Em vida, a arte deles foi esnobada, desvalorizada. Não era qualificada o bastante para a sua geração. Com a morte, porém, veio o reconhecimento tardio. Pouco tempo depois as obras deles passaram a ser reverenciadas, a valer centenas de milhares ao redor do mundo. Uma realidade injusta e torturante que se torna o mote perfeito para o cínico Velvet Buzzsaw. Após tecer o seu ácido comentário sobre o jornalismo sensacionalista no extraordinário O Abutre, o diretor e roteirista Dan Gilroy decide apontar a sua afiada mira agora para o diluído cenário da arte moderna, se insurgindo contra o egocentrismo, a futilidade e o perigoso jogo ambição por trás deste milionário negócio num thriller de horror irônico, enervante e indiscutivelmente inteligente. Um filme instigante como uma grande obra de arte deveria ser. 

Sem intenção de ser mais um representante do terror paranormal, Velvet Buzzsaw não é o tipo de obra pensada para agradar a todos. Seus personagens são (ou tem atos) em sua maioria detestáveis. O cenário em que a trama é ambientada é de uma futilidade desconfortável. O mundo da arte moderna exposto aqui está longe de fazer parte do dia a dia do grande público. E este, talvez, seja um dos maiores trunfos do novo projeto de Dan Gilroy. Ao nos distanciar dos seus ambiciosos protagonistas, o realizador conduz o nosso olhar para a sua inspirada crítica envolvendo o cruel ‘modus operandi’ dos negociantes de obras primas, se insurgindo contra a falta de visão, a ganância, a pretensa superioridade dos críticos e o completo desdém para com os sentimentos do artista com ferocidade e um distorcido senso de humor. Com um consistente uso do viés satírico, Gilroy invade esta seleta realidade a partir da perspectiva do afetado Morf (Jake Gyllenhaal), um respeitado (e temido) analista de arte que era tratado como aquele capaz de definir se tal pintura faria ou não sucesso. Acostumado com a rotina de afagos e bajulação, ele se vê cada vez mais envolvido pela bela Jospehine (Zawe Ahston), uma compradora carente e um tanto quanto astuta que só queria superar um relacionamento fracassado. Disposta a dar a volta por cima, ela vê a sua chance aparecer quando, após encontrar um vizinho morto no ‘hall’ do seu apartamento, descobre que o desconhecido homem havia sido um virtuoso pintor e que as suas intrigantes obras iriam parar no lixo. Movida pela euforia, Josephine decide se apossar das telas sem qualquer permissão, atraindo a atenção da sua ferina chefe Rhodora (Rene Russo). Intrigado pela qualidade do material deste anônimo, Morf se vê tentado a entender a verdade do pintor, sem sequer desconfiar que ele tinha colocado muito mais do que tinta nas suas criações.


Com personagens histriônicos em mãos e uma singular visão sobre o exótico mundo da arte moderna, Dan Gilroy esbanja perspicácia ao trabalhar o conceito do protagonista\antagonista ausente. Seguindo uma lógica reconhecível dentro do mundo da pintura, o diretor é inteligente ao se debruçar sobre as agruras do artista morto, usando o contexto paranormal para refletir sobre a dor de um pintor talentoso “condenado” ao anonimato. O poder de sugestão, aqui, é a alma do negócio. Sem a intenção de revelar muito para o espectador, Velvet Buzzsaw instiga ao soltar apenas algumas pistas, ao permitir que o público consiga ir além dos fatos apresentados. Por mais que, numa só sequência, Gilroy derrape na curva da exposição ao se explicar demais quanto a vida do pintor, o longa - como um todo - consegue encontrar na amargura do artista o mote perfeito para a construção da ameaça. Nas entrelinhas, inclusive, Gilroy é cuidadoso ao apontar o dedo para o excruciante processo dos pintores em busca de inspiração, ao refletir sobre os perigos em torno da busca pelo reconhecimento\perfeição, encontrando no comedido personagem vivido por John Malkovich uma sólida ponte para o mundo real. Um cenário em que muitos literalmente sacrificam um pouco de si em prol da sua arte. Tudo em busca de uma “aprovação” que, diante da vaidade e dos interesses escusos de figuras como Morf, Rhodora e Josephine, em muitos casos nunca acontece. O que, sem querer revelar muito, confere um inesperado (e, confesso, saboroso) status de “filme de vingança” à produção original Netflix.


O charme de Velvet Buzzsaw, porém, reside no “mundo dos vivos”, na maneira com que a película descortina a rotina de ganância, falsidade e egos nos bastidores do desconstruído mundo da arte moderna. Sem cair no clichê de questionar a validade do que é considerado uma obra prima nos dias de hoje, Dan Gilroy não poupa ninguém ao debochar, a partir dos seus caricatos protagonistas, da face mais vazia e venal deste reservado mundo. Sob uma perspectiva propositalmente exagerada, que só reforça o natural viés cômico da obra, o realizador é cínico ao “punir” a arrogância dos personagens. Se nos 1980 o sexo era um sinônimo quase certo de morte no cinema de Horror, Gilroy é criativo ao tratar a ambição como o “pecado mortal” da vez, brincando com esta clássica estrutura do gênero sempre que o esperto argumento transita da comédia para o terror. Além disso, o diretor é particularmente cuidadoso ao desenhar o imprevisível arco do excêntrico Morf. Por trás do cinismo e do status vaidoso construído ao longo de anos, existia ali um crítico consciente do que se transformou. Numa performance afetadíssima, Jake Gyllenhaal abraça as múltiplas facetas do personagem com intensidade, entregando um tipo ora inconsequente, ora sensível, ora desequilibrado. Um homem que, finalmente desafiado por algo que não podia compreender, decide correr contra o tempo para reparar as suas falhas. Uma performance maiúscula. Num todo, aliás, o talentoso elenco abraça a proposta carregada do longa com entusiasmo, com destaque para o trio Rene Russo, Zawe Ashton e Toni Collete. Três personagens ardilosas embebecidas pela imoralidade e a sede pelo lucro.


Como disse lá acima, porém, Velvet Buzzsaw tem tudo para ser um filme divisivo. E muito em função da maneira com que Dan Gilroy explora o elemento do Horror. Embora o roteiro siga um formato reconhecível dentro do gênero, o realizador não parece interessado em conseguir sustos fáceis. Por mais que o ‘modus operandi’ da entidade seja muito criativo, abrindo espaço para a exploração de elementos cênicos\artísticos naturalmente soturnos, Gilroy testa as nossas expectativas ao valorizar a ironia em detrimento do choque. Mesmo as sequências mais gráficas são pontuadas com muito humor, o que pode ser um baita problema para os mais puristas. Confesso, porém, que talvez o maior deslize do longa resida na sensação de repetição que toma conta da metade final da película. No momento em que os segredos em torno do pintor são expostos, Gilroy acelera as coisas na tentativa de pontuar o arco de todos os personagens, expondo a face mais irregular da produção quando se vê obrigado a abraçar uma dinâmica mais tradicional do cinema de Horror. Na verdade, falta ao filme um clima terror\suspense mais constante e equilibrado, o que ajuda a explicar o desnível do terço final. Por outro lado, enquanto a equipe de direção de arte impressiona ao traduzir a opulência e o luxo ostentado pelo ambiente proposto, Gilroy mostra categoria ao extrair arrepios das expressivas obras de artes, realçando a face raivosa da entidade com inventividade.


Estiloso, irônico e provocador, Velvet Buzzsaw alia a beleza das pinturas clássicas (os planos aéreos são magníficos) ao viés crítico da arte moderna (a gag com a morte de uma das personagens é sensacional) num thriller de Horror (ou seria de Vingança?) cínico, extravagante e a sua maneira original. Com a liberdade ofertada pela Netflix, Dan Gilroy ousa ao rir do pretensiosismo de um mundo fechado e vaidoso, atacando alguns reconhecidos arquétipos presentes neste cenário enquanto reverbera o grito de amargura dos verdadeiros virtuosos.

Um comentário:

Unknown disse...

Esse filme tem tudo pra ser um clássico cult. Adoro os filmes de comédia!Eu amo Rene Russo e ela está demais! Uma historia cheia de cenas que me encheram de gargalhadas e que me divertiram de tarde. Para mim, um dos melhores filmes de comédia dos últimos tempos. O filme superou as minhas expectativas, o ritmo da historia nos captura a todo o momento. Se vocês são amantes dos filmes de comédia, este é um que não devem deixar de ver.