sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Vingadores: Guerra Infinita

O valor de um sacrifício

Ao longo dos últimos dez anos, tenho defendido que o maior trunfo do Universo Cinematográfico da Marvel está na maneira com que a franquia explora o altruísmo dos seus personagens. A capacidade dos seus heróis em, no ápice do caos e da destruição, colocarem as suas vidas em risco por um bem maior. Como não citar, por exemplo, o voo para a “morte” de Steve Rogers em Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), o gesto de bravura de Thor diante do imponente Destruidor em Thor (2011), a praticamente suicida ida ao espaço de Tony Stark em Os Vingadores (2012), o “abraço” protetor de Groot em Guardiões da Galáxia (2014), o resgate paternal de Yondu em Guardiões da Galáxia Vol. 2 (2016). Momentos que, indiscutivelmente, ajudaram a transformar o então inicialmente subestimado MCU num verdadeiro fenômeno dentro da Cultura Pop. Um dos “calcanhares de Aquiles” da Marvel na última década, entretanto, ficou pelo inegável apego dos produtores pelas suas produções. Embora, à essa altura, seja difícil contestar os feitos de Kevin Feige e sua turma, é fato que, seguindo a (lucrativa) fórmula familiar proposta desde a fase um, o Universo Vingadores se tornou um ambiente seguro demais nos cinemas. A ousadia, na verdade, se fez presente muito mais na narrativa dos longas, do que propriamente no destino dos (principais) personagens. O sacrifício se tornou um tabu dentro desta escapista engrenagem. Isso, pelo menos, até o lançamento do imponente Vingadores: Guerra Infinita, um filme capaz de redefinir o conceito de épico dentro da franquia. Consciente das elevadas expectativas do público quanto ao poder de destruição do ameaçador Thanos, um personagem que, ao longo da última década, se tornou um dos mais bem construídos da história do segmento, os irmãos Anthony e Joe Russo entregam um blockbuster raro, um longa impiedoso capaz de ir da empolgação ao choque com um estalar de dedos.



 Com roteiro assinado por Christopher Markus e Stephen McFeely, Vingadores: Guerra Infinita é incisivo ao, após anos se esgueirando do assunto, tornar o sacrifício o tema central desta épica aventura. Até onde os nossos heróis estariam dispostos a ir para impedir a chegada do Titã Louco? Com base nesta pergunta, que permeia a frenética trama nos lembrando a todo momento do perigo que cerca os desagrupados Vingadores, Anthony e Joe Russo são enfáticos ao unir os personagens em torno desta tão aguardada ameaça, interligando os envolventes arcos numa contagem regressiva enérgica, impactante e inquestionavelmente dramática. O sentimento de dor é trabalhado (em maior ou menor escala) da primeira à última cena, comprovando que, assim como no recente Thor: Ragnarok, as consequências são reais e (ao que tudo indica) permanentes. Ok, pelo menos parte delas. Como esperado, graças a magnífica (e cada vez mais fluída) engrenagem Marvel, os irmãos Russo não desperdiçam um segundo sequer de destruição, encontrando na queda de Asgard o ponto de partida perfeito para a construção de uma história densa, ágil e naturalmente devastadora. Mais do que simplesmente dividir os protagonistas em pequenos núcleos, a dupla de realizadores é astuta ao fazer o argumento ganhar corpo através deles, indo além das formulaicas ‘sidequests’ ao tornar cada uma destas subtramas parte integrante do todo, ao preencher estes micro arcos com conflitos emocionais de maneira engenhosa e nada redundante. Neste sentido, outra vez, precisamos aplaudir o esmero do MCU em dar relevância a cada um dos seus inúmeros protagonistas. Com mais de trinta personagens dispostos em seu “tabuleiro”, as únicas ausências sentidas são as do Homem-Formiga e a do Gavião Arqueiro, é impressionante como Anthony e Joe conseguem dar, ao menos, uma grande cena para cada um deles, permitindo que o espectador não só vibre com os seus atos em campo de batalha, mas também sofra com as iminentes perdas. Uma reação de choque potencializada pelo respeito com que o longa trata o fim, a morte, as despedidas. O silêncio, aqui, é explorado com requintes de crueldade, estreitando o elo entre o público e os protagonistas em momentos chaves da película.


Dividido, inicialmente, em quatro subgrupos, o núcleo de Nova Iorque liderado por um despreparado Tony Stark (Robert Downey Jr,), o espacial por um imaturo Peter Quill (Chris Pratt), o de Wakanda por um introspectivo Steve Rogers (Chris Evans) e o Nidavellir por um raivoso Thor (Chris Hemsworth), o grande diferencial de Guerra Infinita está na maneira com o roteiro subverte o ‘status quo’ da franquia quando o assunto é o protagonismo nesta sequência. Por mais que o Homem de Ferro, o Capitão América e o Hulk sigam como figuras centrais, Anthony e Joe Russo são cuidadosos ao investir em novas peças, extraindo o peso e a dramaticidade de arcos até então mais “escanteados” no universo Vingadores. De longe o personagem mais ‘bad-ass’ deste capítulo, Thor, seguindo o rumo natural apresentado por Ragnarok, finalmente assume o protagonismo com um arco intenso movido pela raiva e pelo desejo de vingança. Mesmo sem descaracteriza-lo perante o público, ele segue o deus nórdico autoconfiante e socialmente desajustado, os irmãos Russo mostram propriedade ao dar voz à nuances pouco exploradas do herói, finalizando o seu processo de “remodelação” com louvor. Com motivações justas e um arco muito bem desenvolvido, Thor é o primeiro a tratar o sacrifício como o seu limite, entregando tudo o que tinha a oferecer em memória daqueles que tiveram as suas vidas ceifadas sem direito a defesa. Se Thor surge como o elemento mais reativo da trama, a complexa Gamora (Zoe Saldana) rouba a cena com o subplot mais íntimo do longa. Não era segredo para ninguém que, por ser “filha” adotiva de Thanos, a letal alienígena seria uma peça importante desta engrenagem. Ao longo da história, porém, os irmãos Russo são categóricos ao explorar este doloroso ‘background’ familiar com profundidade e indiscutível coragem. Além de servir como um espelho para a face mais humana de Thanos, Gamora ganha uma função crucial dentro da película, se vendo obrigada a cogitar o seu próprio sacrifício em prol de um segredo capaz de mudar o curso desta guerra. Por mais que, num primeiro momento, esta reaproximação renda uma das soluções mais convenientes do longa, Anthony e Joe compensam pela forma cuidadosa com que investigam as emoções mais reprimidas dos dois, construindo assim a relação mais trágica do MCU até então.


Uma aura dramática que reverbera também em outra das grandes surpresas do longa, a poderosa Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen). Uma das personagens mais interessantes do MCU, a heroína ganha um arco igualmente denso e sentimental, principalmente pela sua estreita conexão com o altruísta Visão (Paul Bettany) e a cobiçada Joia da Mente. Sem querer revelar muito, Anthony e Joe Russo injetam peso à trama ao atrelar a jornada da jovem Vingadora a um outro tipo de sacrifício, uma eventualidade cada vez mais provável que a coloca numa situação muito delicada. O que fica bem claro dentro do implacável clímax. Afinal de contas, o quão “egoísta” pode ser o seu amor? No que diz respeito ao sacrifício, entretanto, ninguém está disposto a oferecer tanto em Vingadores: Guerra Infinita quanto Thanos. Diante da sombria proposta lúgubre defendida pela trama, o Titã Louco surge como a alma desta sequência, um vilão com emoções reais disposto a tudo para espalhar pelo universo o seu distorcido senso de equilíbrio. O melhor antagonista da Marvel Studios até então, o imponente personagem surge com um arco sólido, uma visão de futuro próspera que só seria alcançada de maneira vil e genocida. Uma motivação drástica, mas coerente com o passado do portador da manopla do infinito. 


Na verdade, a grande diferença de Thanos para os demais vilões do MCU é que ele, assim como os super-heróis, está inclinado a se sacrificar por aquilo que enxerga como um bem maior. Ele não está colocando a sua existência em risco prazer, por egocentrismo, ou por pura maldade, mas por entender que aquela é a única saída viável para que erros do passado não se repitam. Graças a estupenda performance de Josh Brolin, em outro primoroso trabalho com a técnica de captura de movimento, e a força do texto, o sereno Thanos se revela então um antagonista com nuances próprias, um tipo capaz de amar, de temer, de respeitar, de sofrer, uma combinação de reações\sentimentos que o transforma no natural agente catalisador da película. Prova disso é que, desta vez, os créditos se encerram com um “Thanos irá voltar” e não com um “Vingadores irão voltar”, nem tão pouco um “Guardiões irão voltar”. Talvez o único senão envolvendo a figura do antagonista está na maneira com que o roteiro subaproveita a relação entre eles e os seus fiéis séquitos. Embora os ameaçadores (e visualmente marcantes) membros da Ordem Negra sirvam a contento para o avançar da fragmentada trama, em especial a indomável Próxima Meia-Noite e o ardiloso Fauce de Ébano, é nítido que Thanos nutria pelos seus “filhos” sentimentos pouco explorados pela história.


Como um ótimo representante da franquia Vingadores, entretanto, Guerra Infinita se revela uma aventura tecnicamente e esteticamente memorável. No que diz respeito ao CGI, os irmãos Russo exibem a sua reconhecida perícia ao transitar por “universos” contrastantes com energia e grandiosidade cênica. Mesmo após dezoito produções, o MCU segue surpreendendo, extraindo o máximo da tecnologia atual ao não só atualizar os personagens (vide o agora “senhor de si” Doutor Estranho, o “novo” Homem de Ferro e o incrível Aranha de Ferro), como também ampliar o escopo da ação. O resultado é uma mistura épica e empolgante, uma combinação de efeitos visuais insanos, enquadramentos imponentes, personagens cativantes e embates de tirar o fôlego. Como não se encantar, por exemplo, pelo senso de simultaneidade dos irmãos Russo nas sequências de ação, culminando em batalhas dinâmicas como as cenas na Escócia e o fantástico confronto em Titan. Ou então pela originalidade com que os realizadores traduzem a letalidade de Thanos no último ato, uma solução que, além de respeitar o padrão PG-13 defendidos pela Disney, se revela um recurso dramático poderosíssimo. Um predicado, verdade seja dita, valorizado pelo extraordinário trabalho da equipe de montagem que, aqui, faz as duas horas e meia de película passarem com uma fluidez rara dentro do Universo Vingadores. 


Nem só de superpoderes, porém, vive Guerra Infinita. Reconhecido pela ferocidade das suas sequências de ação mais íntimas, Anthony e Joe nos brindam com pelo menos três grandes duelos menores, com destaque máximo para a explosão ‘girl power’ em Wakanda. Um elemento, obviamente, potencializado pela entrega física e emocional do talentoso\entrosado elenco, com destaque para as sólidas performances do quarteto Robert Downey Jr, Zoe Saldana, Elizabeth Olsen e Benedict Cumberbatch. Somado a isso, é interessante ver como, apesar do teor soturno, a dupla de diretores não se faz de rogada ao explorar as cores vibrantes, respeitando a palheta (e consequentemente o tom) de cada uma das suas “marcas” sem sacrificar o conjunto da película. Nas cenas no espaço, em especial, Anthony e Joe enchem a tela de estilo ao valorizar as cores saturadas, buscando referência em Guardiões das Galáxias na composição dos imersivos expansivos cenários espaciais. Ponto para a vigorosa fotografia de Trent Opaloch (Guerra Civil), cuidadosa ao replicar a assinatura de outros realizadores sem necessariamente copiá-los.


Por fim, embora os ótimos alívios cômicos se revelem mais inconstantes do que o costume, Vingadores: Guerra Infinita é um espetáculo corajoso, narrativamente inteligente e impactante, o Império Contra-Ataca (1980) do MCU. Com um nível de “desapego” raro na franquia, os irmãos Anthony e Joe Russo fazem jus ao (alardeado) legado de destruição do titã louco numa obra com um feroz senso de urgência, explorado o viés altruísta dos seus super-heróis em sua máxima potência num literal (e um tanto quanto melancólico) arrasa-quarteirões. Um filme evento que, embora tenha um satisfatório senso de conclusão, é ainda esperto ao alimentar as possibilidades para os próximos capítulos, o que fica claro na inventiva cena pós-crédito, estabelecendo algumas possibilidades que só comprovam a criatividade do MCU em seguir movendo as suas peças mirando o futuro sem esquecer do presente.

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