O valor de um sacrifício
Ao longo dos últimos dez anos,
tenho defendido que o maior trunfo do Universo Cinematográfico da Marvel está
na maneira com que a franquia explora o altruísmo dos seus personagens. A
capacidade dos seus heróis em, no ápice do caos e da destruição, colocarem as
suas vidas em risco por um bem maior. Como não citar, por exemplo, o voo para a
“morte” de Steve Rogers em Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), o gesto
de bravura de Thor diante do imponente Destruidor em Thor (2011), a praticamente
suicida ida ao espaço de Tony Stark em Os Vingadores (2012), o “abraço”
protetor de Groot em Guardiões da Galáxia (2014), o resgate paternal de Yondu
em Guardiões da Galáxia Vol. 2 (2016). Momentos que, indiscutivelmente,
ajudaram a transformar o então inicialmente subestimado MCU num verdadeiro fenômeno
dentro da Cultura Pop. Um dos “calcanhares de Aquiles” da Marvel na última
década, entretanto, ficou pelo inegável apego dos produtores pelas suas produções.
Embora, à essa altura, seja difícil contestar os feitos de Kevin Feige e sua
turma, é fato que, seguindo a (lucrativa) fórmula familiar proposta desde a
fase um, o Universo Vingadores se tornou um ambiente seguro demais nos cinemas.
A ousadia, na verdade, se fez presente muito mais na narrativa dos longas, do
que propriamente no destino dos (principais) personagens. O sacrifício se
tornou um tabu dentro desta escapista engrenagem. Isso, pelo menos, até o
lançamento do imponente Vingadores: Guerra Infinita, um filme capaz de
redefinir o conceito de épico dentro da franquia. Consciente das elevadas
expectativas do público quanto ao poder de destruição do ameaçador Thanos, um
personagem que, ao longo da última década, se tornou um dos mais bem
construídos da história do segmento, os irmãos Anthony e Joe Russo entregam um
blockbuster raro, um longa impiedoso capaz de ir da empolgação ao choque com um
estalar de dedos.
Com roteiro assinado por Christopher
Markus e Stephen McFeely, Vingadores: Guerra Infinita é incisivo ao, após anos
se esgueirando do assunto, tornar o sacrifício o tema central desta épica
aventura. Até onde os nossos heróis estariam dispostos a ir para impedir a
chegada do Titã Louco? Com base nesta pergunta, que permeia a frenética trama nos
lembrando a todo momento do perigo que cerca os desagrupados Vingadores,
Anthony e Joe Russo são enfáticos ao unir os personagens em torno desta tão
aguardada ameaça, interligando os envolventes arcos numa contagem regressiva
enérgica, impactante e inquestionavelmente dramática. O sentimento de dor é
trabalhado (em maior ou menor escala) da primeira à última cena, comprovando
que, assim como no recente Thor: Ragnarok, as consequências são reais e (ao que
tudo indica) permanentes. Ok, pelo menos parte delas. Como esperado, graças a
magnífica (e cada vez mais fluída) engrenagem Marvel, os irmãos Russo não
desperdiçam um segundo sequer de destruição, encontrando na queda de Asgard o
ponto de partida perfeito para a construção de uma história densa, ágil e
naturalmente devastadora. Mais do que simplesmente dividir os protagonistas em
pequenos núcleos, a dupla de realizadores é astuta ao fazer o argumento ganhar
corpo através deles, indo além das formulaicas ‘sidequests’ ao tornar cada uma
destas subtramas parte integrante do todo, ao preencher estes micro arcos com
conflitos emocionais de maneira engenhosa e nada redundante. Neste sentido,
outra vez, precisamos aplaudir o esmero do MCU em dar relevância a cada um dos
seus inúmeros protagonistas. Com mais de trinta personagens dispostos em seu “tabuleiro”,
as únicas ausências sentidas são as do Homem-Formiga e a do Gavião Arqueiro, é
impressionante como Anthony e Joe conseguem dar, ao menos, uma grande cena para
cada um deles, permitindo que o espectador não só vibre com os seus atos em
campo de batalha, mas também sofra com as iminentes perdas. Uma reação de
choque potencializada pelo respeito com que o longa trata o fim, a morte, as
despedidas. O silêncio, aqui, é explorado com requintes de crueldade, estreitando
o elo entre o público e os protagonistas em momentos chaves da película.
Dividido, inicialmente, em quatro
subgrupos, o núcleo de Nova Iorque liderado por um despreparado Tony Stark
(Robert Downey Jr,), o espacial por um imaturo Peter Quill (Chris Pratt), o de
Wakanda por um introspectivo Steve Rogers (Chris Evans) e o Nidavellir por um raivoso
Thor (Chris Hemsworth), o grande diferencial de Guerra Infinita está na maneira
com o roteiro subverte o ‘status quo’ da franquia quando o assunto é o
protagonismo nesta sequência. Por mais que o Homem de Ferro, o Capitão América
e o Hulk sigam como figuras centrais, Anthony e Joe Russo são cuidadosos ao
investir em novas peças, extraindo o peso e a dramaticidade de arcos até então
mais “escanteados” no universo Vingadores. De longe o personagem mais ‘bad-ass’
deste capítulo, Thor, seguindo o rumo natural apresentado por Ragnarok,
finalmente assume o protagonismo com um arco intenso movido pela raiva e pelo
desejo de vingança. Mesmo sem descaracteriza-lo perante o público, ele segue o
deus nórdico autoconfiante e socialmente desajustado, os irmãos Russo mostram
propriedade ao dar voz à nuances pouco exploradas do herói, finalizando o seu
processo de “remodelação” com louvor. Com motivações justas e um arco muito bem
desenvolvido, Thor é o primeiro a tratar o sacrifício como o seu limite, entregando
tudo o que tinha a oferecer em memória daqueles que tiveram as suas vidas
ceifadas sem direito a defesa. Se Thor surge como o elemento mais reativo da
trama, a complexa Gamora (Zoe Saldana) rouba a cena com o subplot mais íntimo
do longa. Não era segredo para ninguém que, por ser “filha” adotiva de Thanos,
a letal alienígena seria uma peça importante desta engrenagem. Ao longo da
história, porém, os irmãos Russo são categóricos ao explorar este doloroso ‘background’
familiar com profundidade e indiscutível coragem. Além de servir como um
espelho para a face mais humana de Thanos, Gamora ganha uma função crucial
dentro da película, se vendo obrigada a cogitar o seu próprio sacrifício em
prol de um segredo capaz de mudar o curso desta guerra. Por mais que, num
primeiro momento, esta reaproximação renda uma das soluções mais convenientes
do longa, Anthony e Joe compensam pela forma cuidadosa com que investigam as
emoções mais reprimidas dos dois, construindo assim a relação mais trágica do
MCU até então.
Uma aura dramática que reverbera
também em outra das grandes surpresas do longa, a poderosa Feiticeira Escarlate
(Elizabeth Olsen). Uma das personagens mais interessantes do MCU, a heroína
ganha um arco igualmente denso e sentimental, principalmente pela sua estreita
conexão com o altruísta Visão (Paul Bettany) e a cobiçada Joia da Mente. Sem
querer revelar muito, Anthony e Joe Russo injetam peso à trama ao atrelar a
jornada da jovem Vingadora a um outro tipo de sacrifício, uma eventualidade
cada vez mais provável que a coloca numa situação muito delicada. O que fica
bem claro dentro do implacável clímax. Afinal de contas, o quão “egoísta” pode
ser o seu amor? No que diz respeito ao sacrifício, entretanto, ninguém está
disposto a oferecer tanto em Vingadores: Guerra Infinita quanto Thanos. Diante
da sombria proposta lúgubre defendida pela trama, o Titã Louco surge como a
alma desta sequência, um vilão com emoções reais disposto a tudo para espalhar
pelo universo o seu distorcido senso de equilíbrio. O melhor antagonista da
Marvel Studios até então, o imponente personagem surge com um arco sólido, uma
visão de futuro próspera que só seria alcançada de maneira vil e genocida. Uma
motivação drástica, mas coerente com o passado do portador da manopla do
infinito.
Na verdade, a grande diferença de Thanos para os demais vilões do MCU
é que ele, assim como os super-heróis, está inclinado a se sacrificar por
aquilo que enxerga como um bem maior. Ele não está colocando a sua existência
em risco prazer, por egocentrismo, ou por pura maldade, mas por entender que
aquela é a única saída viável para que erros do passado não se repitam. Graças
a estupenda performance de Josh Brolin, em outro primoroso trabalho com a
técnica de captura de movimento, e a força do texto, o sereno Thanos se revela
então um antagonista com nuances próprias, um tipo capaz de amar, de temer, de
respeitar, de sofrer, uma combinação de reações\sentimentos que o transforma no
natural agente catalisador da película. Prova disso é que, desta vez, os créditos
se encerram com um “Thanos irá voltar” e não com um “Vingadores irão voltar”,
nem tão pouco um “Guardiões irão voltar”. Talvez o único senão envolvendo a
figura do antagonista está na maneira com que o roteiro subaproveita a relação
entre eles e os seus fiéis séquitos. Embora os ameaçadores (e visualmente
marcantes) membros da Ordem Negra sirvam a contento para o avançar da
fragmentada trama, em especial a indomável Próxima Meia-Noite e o ardiloso
Fauce de Ébano, é nítido que Thanos nutria pelos seus “filhos” sentimentos
pouco explorados pela história.
Como um ótimo representante da
franquia Vingadores, entretanto, Guerra Infinita se revela uma aventura
tecnicamente e esteticamente memorável. No que diz respeito ao CGI, os irmãos
Russo exibem a sua reconhecida perícia ao transitar por “universos”
contrastantes com energia e grandiosidade cênica. Mesmo após dezoito produções,
o MCU segue surpreendendo, extraindo o máximo da tecnologia atual ao não só
atualizar os personagens (vide o agora “senhor de si” Doutor Estranho, o “novo”
Homem de Ferro e o incrível Aranha de Ferro), como também ampliar o escopo da
ação. O resultado é uma mistura épica e empolgante, uma combinação de efeitos
visuais insanos, enquadramentos imponentes, personagens cativantes e embates de
tirar o fôlego. Como não se encantar, por exemplo, pelo senso de simultaneidade
dos irmãos Russo nas sequências de ação, culminando em batalhas dinâmicas como as
cenas na Escócia e o fantástico confronto em Titan. Ou então pela originalidade
com que os realizadores traduzem a letalidade de Thanos no último ato, uma
solução que, além de respeitar o padrão PG-13 defendidos pela Disney, se revela
um recurso dramático poderosíssimo. Um predicado, verdade seja dita, valorizado
pelo extraordinário trabalho da equipe de montagem que, aqui, faz as duas horas
e meia de película passarem com uma fluidez rara dentro do Universo Vingadores.
Nem só de superpoderes, porém, vive Guerra Infinita. Reconhecido pela
ferocidade das suas sequências de ação mais íntimas, Anthony e Joe nos brindam
com pelo menos três grandes duelos menores, com destaque máximo para a explosão
‘girl power’ em Wakanda. Um elemento, obviamente, potencializado pela entrega
física e emocional do talentoso\entrosado elenco, com destaque para as sólidas
performances do quarteto Robert Downey Jr, Zoe Saldana, Elizabeth Olsen e Benedict
Cumberbatch. Somado a isso, é interessante ver como, apesar do teor soturno, a
dupla de diretores não se faz de rogada ao explorar as cores vibrantes,
respeitando a palheta (e consequentemente o tom) de cada uma das suas “marcas”
sem sacrificar o conjunto da película. Nas cenas no espaço, em especial,
Anthony e Joe enchem a tela de estilo ao valorizar as cores saturadas, buscando
referência em Guardiões das Galáxias na composição dos imersivos expansivos
cenários espaciais. Ponto para a vigorosa fotografia de Trent Opaloch (Guerra
Civil), cuidadosa ao replicar a assinatura de outros realizadores sem
necessariamente copiá-los.
Por fim, embora os ótimos alívios
cômicos se revelem mais inconstantes do que o costume, Vingadores: Guerra
Infinita é um espetáculo corajoso, narrativamente inteligente e impactante, o
Império Contra-Ataca (1980) do MCU. Com um nível de “desapego” raro na
franquia, os irmãos Anthony e Joe Russo fazem jus ao (alardeado) legado de
destruição do titã louco numa obra com um feroz senso de urgência, explorado o
viés altruísta dos seus super-heróis em sua máxima potência num literal (e um
tanto quanto melancólico) arrasa-quarteirões. Um filme evento que, embora tenha
um satisfatório senso de conclusão, é ainda esperto ao alimentar as
possibilidades para os próximos capítulos, o que fica claro na inventiva cena
pós-crédito, estabelecendo algumas possibilidades que só comprovam a
criatividade do MCU em seguir movendo as suas peças mirando o futuro sem
esquecer do presente.
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