sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Do Fundo do Baú Especial (Kirk Douglas)


Um dos atores mais versáteis e proeminentes da sua geração, o centenário Kirk Douglas merece carregar consigo o rótulo de lenda de Hollywood. Ao longo de quase sessenta anos de carreira, o pai do também astro Michael Douglas não só construiu uma filmografia rica e expressiva, como também uma fantástica história de vida, uma trajetória memorável que ganha mais um capítulo nesta sexta-feira (09), data em que o ator completa o seu centésimo ano de vida. Nascido no dia 9 de Dezembro de 1916, Kirk Douglas cresceu na cidade de Amsterdam, no Estado de Nova Iorque. Filho de imigrantes russos, ele conviveu com a pobreza extrema e o preconceito desde a sua infância, o que talvez explique a sua personalidade forte e inabalável. Responsável por ajudar no sustento da sua família e dos seus próprios estudos durante a juventude, Douglas utilizou uma lista com as suas honrarias escolares, a maioria delas envolvendo a atuação em pequenas peças, para conquistar uma vaga na Universidade St. Lawrance.

Douglas em Glória Feita de Sangue
Não demorou muito, porém, para que o talento de Kirk Douglas chamasse a atenção da consagrada Academia Americana de Artes Dramáticas de Nova Iorque, a mais antiga escola de atuação em língua inglesa do mundo. Com uma bolsa de estudos em mãos, o jovem ator passou a investir em pequenas montagens da Broadway. Neste meio tempo, aliás, ele conheceu a então jovem Lauren Bacall (Uma Aventura Na Martinica), uma parceira de classe que viria a se tornar uma peça decisiva para o início da sua carreira cinematográfica. Antes de conquistar a primeira chance em Hollywood, no entanto, Kirk se alistou a Marinha Americana em 1941, servindo com louvor até o término da Segunda Guerra Mundial. De volta aos EUA, o ator estreou nos cinemas no drama noir O Tempo Não Apaga (1946), um papel conseguido graças ao esforço de Bacall, que usou a sua influencia para convencer o produtor Hal B. Wallis a dar uma oportunidade ao seu amigo. O que se viu nas décadas seguintes foi a construção de uma aclamada carreira, uma trajetória marcada pelas grandes atuações, pelas produções arrojadas e pela sua vocação ativista. No auge do Macartismo, inclusive, Kirk foi um dos poucos grandes astros a se erguer contra a perseguição política aos realizadores considerados comunistas, um tema brilhantemente retratado no recente Trumbo (2016). Uma postura insurgente que lhe rendeu o justificado rótulo de "o último durão" de Hollywood.

Kirk Douglas em Spartacus
Pois bem, nesta data especial me peguei pensando sobre quais títulos deveriam marcar presença neste Do Fundo do Baú, mas a tarefa não é a das mais fáceis. Infelizmente, apesar da sua importância para o mundo da sétima arte, muitos dos seus trabalhos não são fáceis de serem encontrados em VOD, DVD ou Blu-Ray. Entre os mais clássicos, já pude escrever neste espaço sobre o fantástico Glória Feita de Sangue (1957) e o corajoso épico Spartacus (1960), os dois longas da parceria entre Kirk Douglas e Stanley Kubrick. Além deles, como não citar, por exemplo, os frequentemente elogiados A Montanha dos Sete Abutres (1951), Assim Estava Escrito (1952), Duelo de Titãs (1959) e Sete Dias de Maio (1964), títulos que, confesso, ainda não tive a oportunidade de conferir. Neste Do Fundo do Baú, porém, resolvi destacar as reconhecidas múltiplas facetas de Kirk Douglas trazendo uma breve análise do dramático Invencível (1949), do aventuresco 20.000 Léguas Submarinas (1954) e do biográfico Sede de Viver (1956). Uma singela homenagem a esta inestimável figura humana.

- Invencível (1949)            

                                                                        
Um daqueles filmes sobre o mundo do esporte que transcendem as barreiras do gênero, Invencível é um drama primoroso sobre a nocividade do poder. Sob a batuta refinada de Mark Robson (Terremoto), o longa narra a meteórica ascensão do pugilista Midge Kelly, um homem pobre e orgulhoso que se depara com a chance de sua vida quando é convidado por um bem sucedido empresário (Paul Stewart, impecável) a ingressar no lucrativo mundo do boxe. Com determinação e o apoio do seu fiel irmão (Arthur Kennedy, excelente), Midge logo se torna uma sensação da modalidade e passa a experimentar o melhor e o pior por trás do repentino enriquecimento. Mais do que um simples drama esportivo, Invencível é contundente ao investigar a degradação moral de um homem íntegro, um pugilista indomável que se deslumbra diante das "facilidades" apresentadas pelo mundo do boxe. Robson é cuidadoso ao tornar crível a deterioração do caráter do campeão, principalmente quando coloca o dedo na ferida ao expor a corrupção, a ganância, a manipulação e as traições presentes neste tóxico ambiente.


Somado a isso, o realizador constrói uma obra esteticamente excepcional, um longa marcado pelas realísticas sequências de ação, pela intimista fotografia de Franz Planer, pelos inventivos enquadramentos e pela naturalidade com que lida com a passagem de tempo. O que, aliás, talvez explique o Oscar de Melhor Edição recebido pelo filme. O grande trunfo de Invencível, porém, reside na poderosa atuação de Kirk Douglas. Magnífico ao traduzir derrocada de Midge, o ator fascina ao absorver com sinceridade a fraqueza humana do seu carismático personagem, um tipo explosivo, marginalizado pela pobreza, que sonhava em ser tratado com igualdade pela sociedade. Indo da caça ao caçador, Douglas nos faz enxergar tanto a pureza e o desconforto do pugilista perante os poderosos, quanto os motivos que o levaram a atitudes tão detestáveis, culminando numa performance complexa arrematada de forma sublime na comovente sequência final. Responsável por dar a Kirk Douglas a sua primeira indicação do Oscar de Melhor Ator, Invencível é uma película singular, uma produção à frente do seu tempo que abriu as portas para títulos do porte de Réquiem para um Lutador (1962), Rocky: Um Lutador (1977) e Touro Indomável (1980).

- 20.000 Léguas Submarinas (1954)


Adaptação da aclamada obra de Julio Verne, 20.000 Léguas Submarinas é uma aventura com "A" maiúsculo que se preocupa em valorizar as características da obra que a inspirou. Conduzido com grandiosidade por Richard Fleischer (Conan: O Bárbaro), o longa resgata a magia presente no livro do escritor francês, principalmente ao reproduzir os mistérios em torno do ambiente subaquático, incluindo o imponente submarino Nautilus, as peculiares criaturas marinhas e as explosivas batalhas navais. Com recursos até então inovadores, Fleischer lava a ação para o fundo do mar em algumas cenas, o que só amplia a sensação de imersão em torno desta divertida película. Além disso, a primorosa direção de arte amplia a sensação de maravilhamento ao recriar em detalhes o interior da expressiva embarcação do Capitão Nemo, um cenário rico e vasto que se revelou um triunfo visual na época de lançamento. Sem querer revelar muito, mesmo sem recursos digitais, a cena do ataque de um polvo gigante é ainda hoje impressionante, assim como a impagável sequência da fuga de uma pequena ilha povoada por índios canibais. Momentos emblemáticos numa época em que os realizadores precisavam usar a criatividade para conceber as grandes produções.


O grande mérito de 20.000 Léguas Submarinas, porém, está na construção dos icônicos personagens. Indo além do teor escapista, o roteirista Earl Felton brilha ao potencializar o contexto bélico presente no texto original, encontrando na ambígua figura do Capitão Nemo a complexidade necessária para discutir a relação do homem com as novas tecnologias. Impulsionado pela excepcional atuação de James Mason, impecável ao traduzir o misto de superioridade, obsessão e idealismo do líder do Nautilus, Richard Fleischer mostra o quão tênue pode ser a linha entre o herói e o vilão. O realizador é sagaz ao questionar, por exemplo, as intenções "pacifistas" de Nemo, um homem recluso que, após uma tragédia pessoal, decidiu usar a sua tecnologia para combater a predatória marinha norte-americana. Num todo, aliás, o longa é cuidadoso ao estabelecer os demais personagens, que, assim como o capitão, em nenhum momento soam rasos ou unidimensionais. A começar pelo corajoso Ned Land, uma espécie de Han Solo dos Sete Mares. Com uma interpretação radiante, o carismático Kirk Douglas cria um tipo impulsivo e ardiloso, um caçador bem humorado que, apesar da sua vocação altruísta, não compartilha das nobres intenções dos seus parceiros de viagem. Um senso de ambiguidade que atinge também o Professor Pierre Aronnax, uma figura curiosa que, fascinada pelo enigmático Nemo, reluta em enxergar os perigos por trás das atitudes do capitão. A culta relação entre os dois, inclusive, rende alguns dos diálogos mais reflexivos do longa, a maioria deles valorizados pelo elegante trabalho de Paul Lukas. Transitando por temas hoje incompatíveis com as produções Disney, 20.000 Léguas Submarinas é uma produção singular, uma aventura ousada que equilibra diversão e conteúdo com extrema energia.

- Sede de Viver (1956)


Profunda e reveladora, Sede de Viver é uma cinebiografia completa. Um relato precioso sobre a vida do genial e caótico pintor holandês Vincent van Gogh. Conduzido com maestria por Vincente Minnelli (Sinfonia de Paris), o longa recria com sensibilidade a complicada persona do pintor pós-impressionista, encontrando na magnífica performance de Kirk Douglas o peso necessário para recriar o corrosivo 'modus operandi' do pintor. Numa das atuações mais complexas de sua vasta carreira, o astro de Spartacus traduz com humanidade as nuances íntimas de Van Gogh, um homem sensível e genial que afirmava não ter medo das suas próprias emoções. Impecável ao abraçar a deterioração física e emocional do seu personagem, Douglas nos faz enxergar o quão danosa era a luta do artista pela obra perfeita, pela tela que pudesse exprimir os seus próprios sentimentos, um obsessivo processo de criação marcado pela solidão, pelo isolamento e pelas constantes brigas com aqueles que o cercavam. Nas entrelinhas, inclusive, Minneli mostra categoria ao revelar o árduo esforço do pintor para elevar o nível do seu trabalho, as suas inspirações e influências, dando ao público a possibilidade de conhecer outros grandes realizadores da época, entre eles os célebres Georges Seurat, Camille Pisarro e Paul Gauguin. Da instável relação entre Gauguin e Van Gogh, inclusive, nasce alguns dos diálogos mais intensos da película, o que talvez explique o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante dado ao expansivo Anthony Quinn. Curiosamente, Kirk Douglas também foi indicado ao prêmio de Melhor Ator, mas não levou a estatueta.


Como um todo, aliás, Sede de Viver não se resume ao primoroso desempenho do elenco. Vincente Minnelli se debruça com extrema propriedade sobre a vida do pintor holandês, permitindo que o espectador conheça a personalidade do biografado e entenda a origem das suas telas. Ao longo das envolventes duas horas de filme, o realizador transita por temas marcantes na vida de Van Gogh, expondo através deles, por exemplo, a vocação proletária do artista, a sua paixão pela vida no campo e o seu distanciamento do estilo de vida nobre. Além disso, Minnelli é rigorosamente cuidadoso ao reproduzir os bastidores de alguns dos trabalhos mais icônicos do artista. Fazendo um excelente uso da radiante fotografia bucólica da dupla Russell Harlan (Testemunha da Acusação) e Freddie Young (Lawrence da Arábia), o diretor nos brinda com uma obra de arte no que diz respeito ao aspecto visual, principalmente quando reconstrói alguns dos modelos e cenários imortalizados pelos pincéis de Van Gogh. Se pararmos para analisar em detalhes, é impressionante o zelo dos realizadores em reproduzir, até mesmo, a palheta de cores utilizadas nas obras, um trabalho sutil que se torna evidente nos momentos em que as pinturas do holandês são projetadas na tela. Em suma, sem nunca parecer reverencial, Sede de Viver encanta, justamente, por valorizar a faceta mais humana deste inestimável pintor, um homem inquieto e visionário que estabeleceu uma devotada relação com a sua arte. 

Michael e Kirk Douglas
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