Um dos atores mais versáteis e proeminentes da sua geração, o centenário
Kirk Douglas merece carregar consigo o rótulo de lenda de Hollywood. Ao longo
de quase sessenta anos de carreira, o pai do também astro Michael Douglas não
só construiu uma filmografia rica e expressiva, como também uma fantástica
história de vida, uma trajetória memorável que ganha mais um capítulo nesta
sexta-feira (09), data em que o ator completa o seu centésimo ano de vida. Nascido no dia 9 de Dezembro de 1916, Kirk Douglas cresceu na cidade de
Amsterdam, no Estado de Nova Iorque. Filho de imigrantes russos, ele conviveu
com a pobreza extrema e o preconceito desde a sua infância, o que talvez
explique a sua personalidade forte e inabalável. Responsável por ajudar no
sustento da sua família e dos seus próprios estudos durante a juventude,
Douglas utilizou uma lista com as suas honrarias escolares, a maioria delas
envolvendo a atuação em pequenas peças, para conquistar uma vaga na Universidade
St. Lawrance.
Douglas em Glória Feita de Sangue |
Não demorou muito, porém, para que o talento de Kirk Douglas chamasse a atenção da consagrada Academia Americana de Artes Dramáticas de Nova Iorque, a mais antiga escola de
atuação em língua inglesa do mundo. Com uma bolsa de estudos em mãos, o jovem ator passou a investir em pequenas montagens da Broadway. Neste meio tempo, aliás, ele
conheceu a então jovem Lauren Bacall (Uma Aventura Na Martinica), uma parceira
de classe que viria a se tornar uma peça decisiva para o início da sua carreira
cinematográfica. Antes de conquistar a primeira chance em Hollywood, no
entanto, Kirk se alistou a Marinha Americana em 1941, servindo com louvor até o
término da Segunda Guerra Mundial. De volta aos EUA, o ator estreou nos cinemas
no drama noir O Tempo Não Apaga (1946), um papel conseguido graças ao esforço
de Bacall, que usou a sua influencia para convencer o produtor Hal B. Wallis a
dar uma oportunidade ao seu amigo. O que se viu nas décadas seguintes foi a
construção de uma aclamada carreira, uma trajetória marcada pelas grandes
atuações, pelas produções arrojadas e pela sua vocação ativista. No
auge do Macartismo, inclusive, Kirk foi um dos poucos grandes astros a se
erguer contra a perseguição política aos realizadores considerados comunistas,
um tema brilhantemente retratado no recente Trumbo (2016). Uma postura insurgente que lhe rendeu o justificado rótulo de "o último
durão" de Hollywood.
Kirk Douglas em Spartacus |
Pois bem, nesta data especial me peguei pensando sobre quais títulos
deveriam marcar presença neste Do Fundo do Baú, mas a tarefa não é a das mais fáceis.
Infelizmente, apesar da sua importância para o mundo da sétima arte, muitos dos
seus trabalhos não são fáceis de serem encontrados em VOD, DVD ou Blu-Ray.
Entre os mais clássicos, já pude escrever neste espaço sobre o fantástico
Glória Feita de Sangue (1957) e o corajoso épico Spartacus (1960), os dois
longas da parceria entre Kirk Douglas e Stanley Kubrick. Além deles, como não
citar, por exemplo, os frequentemente elogiados A Montanha dos Sete Abutres
(1951), Assim Estava Escrito (1952), Duelo de Titãs (1959) e Sete Dias de Maio
(1964), títulos que, confesso, ainda não tive a oportunidade de conferir. Neste
Do Fundo do Baú, porém, resolvi destacar as reconhecidas múltiplas facetas de
Kirk Douglas trazendo uma breve análise do dramático Invencível (1949), do
aventuresco 20.000 Léguas Submarinas (1954) e do biográfico Sede de Viver
(1956). Uma singela homenagem a esta inestimável figura humana.
- Invencível (1949)
Um daqueles filmes sobre o mundo do esporte que transcendem as barreiras
do gênero, Invencível é um drama primoroso sobre a nocividade do poder. Sob a
batuta refinada de Mark Robson (Terremoto), o longa narra a meteórica ascensão
do pugilista Midge Kelly, um homem pobre e orgulhoso que se depara com a chance
de sua vida quando é convidado por um bem sucedido empresário (Paul Stewart,
impecável) a ingressar no lucrativo mundo do boxe. Com determinação e o apoio
do seu fiel irmão (Arthur Kennedy, excelente), Midge logo se torna uma sensação
da modalidade e passa a experimentar o melhor e o pior por trás do repentino
enriquecimento. Mais do que um simples drama esportivo, Invencível é
contundente ao investigar a degradação moral de um homem íntegro, um pugilista
indomável que se deslumbra diante das "facilidades" apresentadas pelo
mundo do boxe. Robson é cuidadoso ao tornar crível a deterioração do caráter do
campeão, principalmente quando coloca o dedo na ferida ao expor a corrupção, a
ganância, a manipulação e as traições presentes neste tóxico ambiente.
Somado a isso, o realizador constrói uma obra esteticamente excepcional,
um longa marcado pelas realísticas sequências de ação, pela intimista
fotografia de Franz Planer, pelos inventivos enquadramentos e pela naturalidade
com que lida com a passagem de tempo. O que, aliás, talvez explique o Oscar de
Melhor Edição recebido pelo filme. O grande trunfo de Invencível, porém, reside
na poderosa atuação de Kirk Douglas. Magnífico ao traduzir derrocada de Midge,
o ator fascina ao absorver com sinceridade a fraqueza humana do seu carismático
personagem, um tipo explosivo, marginalizado pela pobreza, que sonhava em ser
tratado com igualdade pela sociedade. Indo da caça ao caçador, Douglas nos faz
enxergar tanto a pureza e o desconforto do pugilista perante os poderosos,
quanto os motivos que o levaram a atitudes tão detestáveis, culminando numa
performance complexa arrematada de forma sublime na comovente sequência final.
Responsável por dar a Kirk Douglas a sua primeira indicação do Oscar de Melhor
Ator, Invencível é uma película singular, uma produção à frente do seu tempo
que abriu as portas para títulos do porte de Réquiem para um Lutador (1962),
Rocky: Um Lutador (1977) e Touro Indomável (1980).
- 20.000 Léguas Submarinas (1954)
Adaptação da aclamada obra de Julio Verne, 20.000 Léguas Submarinas é
uma aventura com "A" maiúsculo que se preocupa em valorizar as
características da obra que a inspirou. Conduzido com grandiosidade por Richard
Fleischer (Conan: O Bárbaro), o longa resgata a magia presente no livro do
escritor francês, principalmente ao reproduzir os mistérios em torno do ambiente
subaquático, incluindo o imponente submarino Nautilus, as peculiares criaturas
marinhas e as explosivas batalhas navais. Com recursos até então inovadores,
Fleischer lava a ação para o fundo do mar em algumas cenas, o que só amplia a
sensação de imersão em torno desta divertida película. Além disso, a primorosa
direção de arte amplia a sensação de maravilhamento ao recriar em detalhes o
interior da expressiva embarcação do Capitão Nemo, um cenário rico e vasto que
se revelou um triunfo visual na época de lançamento. Sem querer revelar muito,
mesmo sem recursos digitais, a cena do ataque de um polvo gigante é ainda hoje
impressionante, assim como a impagável sequência da fuga de uma pequena ilha
povoada por índios canibais. Momentos emblemáticos numa época em que os
realizadores precisavam usar a criatividade para conceber as grandes produções.
O grande mérito de 20.000 Léguas Submarinas, porém, está na construção
dos icônicos personagens. Indo além do teor escapista, o roteirista Earl Felton
brilha ao potencializar o contexto bélico presente no texto original,
encontrando na ambígua figura do Capitão Nemo a complexidade necessária para
discutir a relação do homem com as novas tecnologias. Impulsionado pela
excepcional atuação de James Mason, impecável ao traduzir o misto de
superioridade, obsessão e idealismo do líder do Nautilus, Richard Fleischer
mostra o quão tênue pode ser a linha entre o herói e o vilão. O realizador é
sagaz ao questionar, por exemplo, as intenções "pacifistas" de Nemo,
um homem recluso que, após uma tragédia pessoal, decidiu usar a sua tecnologia
para combater a predatória marinha norte-americana. Num todo, aliás, o longa é
cuidadoso ao estabelecer os demais personagens, que, assim como o capitão, em
nenhum momento soam rasos ou unidimensionais. A começar pelo corajoso Ned Land,
uma espécie de Han Solo dos Sete Mares. Com uma interpretação radiante, o
carismático Kirk Douglas cria um tipo impulsivo e ardiloso, um caçador bem
humorado que, apesar da sua vocação altruísta, não compartilha das nobres
intenções dos seus parceiros de viagem. Um senso de ambiguidade que atinge
também o Professor Pierre Aronnax, uma figura curiosa que, fascinada pelo
enigmático Nemo, reluta em enxergar os perigos por trás das atitudes do
capitão. A culta relação entre os dois, inclusive, rende alguns dos diálogos
mais reflexivos do longa, a maioria deles valorizados pelo elegante trabalho de
Paul Lukas. Transitando por temas hoje incompatíveis com as produções Disney,
20.000 Léguas Submarinas é uma produção singular, uma aventura ousada que
equilibra diversão e conteúdo com extrema energia.
- Sede de Viver (1956)
Profunda e reveladora, Sede de Viver é uma cinebiografia completa. Um
relato precioso sobre a vida do genial e caótico pintor holandês Vincent van
Gogh. Conduzido com maestria por Vincente Minnelli (Sinfonia de Paris), o longa
recria com sensibilidade a complicada persona do pintor pós-impressionista,
encontrando na magnífica performance de Kirk Douglas o peso necessário para
recriar o corrosivo 'modus operandi' do pintor. Numa das atuações mais
complexas de sua vasta carreira, o astro de Spartacus traduz com humanidade as
nuances íntimas de Van Gogh, um homem sensível e genial que afirmava não
ter medo das suas próprias emoções. Impecável ao abraçar a deterioração física
e emocional do seu personagem, Douglas nos faz enxergar o quão danosa era a
luta do artista pela obra perfeita, pela tela que pudesse exprimir os seus
próprios sentimentos, um obsessivo processo de criação marcado pela solidão,
pelo isolamento e pelas constantes brigas com aqueles que o cercavam. Nas entrelinhas, inclusive, Minneli mostra
categoria ao revelar o árduo esforço do pintor para elevar o nível do seu
trabalho, as suas inspirações e influências, dando ao público a possibilidade
de conhecer outros grandes realizadores da época, entre eles os célebres
Georges Seurat, Camille Pisarro e Paul Gauguin. Da instável relação entre
Gauguin e Van Gogh, inclusive, nasce alguns dos diálogos mais intensos da
película, o que talvez explique o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante dado ao
expansivo Anthony Quinn. Curiosamente, Kirk Douglas também foi indicado ao
prêmio de Melhor Ator, mas não levou a estatueta.
Como um todo, aliás, Sede de Viver não se resume ao primoroso desempenho do elenco. Vincente Minnelli se debruça com extrema propriedade sobre a vida do pintor holandês, permitindo que o espectador conheça a personalidade do biografado e entenda a origem das suas telas. Ao longo das envolventes duas horas de filme, o realizador transita por temas marcantes na vida de Van Gogh, expondo através deles, por exemplo, a vocação proletária do artista, a sua paixão pela vida no campo e o seu distanciamento do estilo de vida nobre. Além disso, Minnelli é rigorosamente cuidadoso ao reproduzir os bastidores de alguns dos trabalhos mais icônicos do artista. Fazendo um excelente uso da radiante fotografia bucólica da dupla Russell Harlan (Testemunha da Acusação) e Freddie Young (Lawrence da Arábia), o diretor nos brinda com uma obra de arte no que diz respeito ao aspecto visual, principalmente quando reconstrói alguns dos modelos e cenários imortalizados pelos pincéis de Van Gogh. Se pararmos para analisar em detalhes, é impressionante o zelo dos realizadores em reproduzir, até mesmo, a palheta de cores utilizadas nas obras, um trabalho sutil que se torna evidente nos momentos em que as pinturas do holandês são projetadas na tela. Em suma, sem nunca parecer reverencial, Sede de Viver encanta, justamente, por valorizar a faceta mais humana deste inestimável pintor, um homem inquieto e visionário que estabeleceu uma devotada relação com a sua arte.
Michael e Kirk Douglas |
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