domingo, 30 de agosto de 2020

Crítica | A Prima Sofia

Decifra-me ou será devorada

Liberdade? Luxo? Sexo? Ilusão? O que poderia representar a estonteante personagem título? O melhor de A Prima Sofia está na maneira com que o longa investiga o efeito desta complexa figura na rotina de uma jovem às avessas com um mundo que não era seu. “O princípio do verdadeiro luxo é ter conhecido o inverso”, diz um ricaço no seu iate aportado no litoral de Cannes. Enquanto foca na efemeridade do momento, o vistoso drama dirigido por Rebecca Zlotowski causa um misto de fascínio e desconforto ao mergulhar na jornada de descobertas da adolescente Naima (Mina Farid). 

Uma garota comum, indecisa sobre o seu futuro, disposta a curtir as últimas férias de verão da sua juventude. Logo no princípio, o argumento assinado pela própria realizadora é sugestivo ao situar os contrastes na vida dela. Embora more numa das cidades turísticas mais cobiçadas do mundo, ela não tem o direito de experimentar as benesses do lugar da mesma forma que os visitantes. Naima nem parecia se incomodar com este fato. Isso até reencontrar a sua querida prima Sofia (Zahia Dehar), uma jovem mulher acostumada a tirar proveito da sua beleza exuberante. Do tipo que abre portas para um novo mundo. Aos olhos de Naima, Sofia começa representando liberdade. Ela tinha aquilo que qualquer garota da sua idade gostaria. Da confiança às roupas de grife. Do charme ao poder de persuasão.

O que começa como um sonho de verão, entretanto, ganha contornos mais densos à medida que Zlotowski enxerga além da inocência de Naima. A fotografia em tons avermelhados sugere perigo e\ou desconhecimento. Ao não dar uma voz ativa a personagem título, a cineasta permite que, tal qual a protagonista, nós decifremos os segredos por trás da escultural esfinge. A cineasta, com isso, deixa o julgamento moral para o público. O foco dela no impacto emocional, na verdade escondida nas aparências.

A Prima Sofia, a rigor, é um filme sobre diferença de classes que não necessariamente soa como tal, em especial pela forma intimista com que estuda as reações de Naima a este ambiente. Sem querer revelar muito, a comovente relação entre ela e o braço direito do ricaço vivido por Benoît Magimel ajuda a potencializar o vazio, a artificialidade por trás do elo que une personagens tão distintos. O paralelo traçado entre os dois é realmente instigante. Uma pena que, nos momentos em que se distancia da perspectiva da adolescente, o longa perca tanto da sua naturalidade. Tenta soar "francês" demais com diálogos poeticamente rasos e uma filosofia tão banalizada quanto o sentido da tatuagem da personagem título. Por falar nela, Sofia é outro problema da obra. Zahia Dehar se esforça para soar como uma Sofia Lauren versão 2.0, mas não consegue atingir as notas dramáticas exigidas pelo insinuante texto. Enfraquece, inclusive, o arco dramático desta que se torna uma espécie de sujeito oculto da equação. Um elemento, verdade seja dito, atenuado pela maneira sensual com que Zlotowski filma a atriz, destacando a sua exuberância sem flertar com o mau gosto. A exceção fica por uma deslocada segunda cena de sexo, bem mais gratuita (e por isso irrelevante) do que o necessário.

Embora se seduza demais pelo luxo em sua camada superficial, o que se reflete na luminosa fotografia paradisíaca externa, A Prima Sofia compensa ao, a partir de um afetuoso estudo de personagem, refletir sobre o preço a ser pago pelo direito de “viver bem a vida” numa realidade que não nos pertence.

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