Irmãos Dardenne flertam com o suspense sem abrir mão da sua realística visão de mundo
Duas das vozes mais autorais do cinema europeu, Jean-Pierre e Luc
Dardenne ganharam um enorme prestígio no circuito de arte devido a sua
realística visão de mundo. Embora a abordagem naturalista da dupla possa soar
incômoda aos olhos do espectador acostumado ao frisson do universo blockbuster,
os irmãos belgas compensam ao investir em histórias universais,
daquelas que fisgam o espectador pela forte carga humana presente no texto. Indo de encontro à romantização dos fatos, os Dardenne se acostumaram a expor as mazelas
em território europeu, ao dar voz às minorias, aos imigrantes e àqueles que
frequentemente passam despercebidos pela grande tela. E após falar sobre o
abandono paterno no comovente O Garoto De Bicicleta (2011) e sobre a crise
econômica no angustiante Dois Dias, Uma Noite (2014), eles apontam a sua
compreensiva mira para a questão dos imigrantes no envolvente A Garota
Desconhecida.
No seu projeto - digamos - mais acessível nos últimos anos, Jean e Luc Dardenne flertam com o cinema de gênero, mais precisamente com o suspense, ao desvendar os segredos por trás de uma misteriosa morte. Com enorme sutileza, os realizadores esbanjam propriedade ao abordar uma série de temas sem nunca perder o senso de coesão, indo além das expectativas ao pintar um relato revelador sobre a realidade dos desfavorecidos em território francês. Por mais que o foco da trama esteja na dedicada Drª Davin (Adéle Haenel), e no seu sentimento de culpa após negar atendimento a uma mulher e descobrir que ela foi encontrada morta a poucos metros dali na manhã seguinte, o roteiro assinado pelos dois diretores é cuidadoso ao, nas entrelinhas, discorrer sobre o abandono, a solidão e o desdém das autoridades para com a realidade dos imigrantes. Numa proposta inteligentemente naturalista, os Dardenne esbanjam categoria ao jogar uma luz sobre o modus operandi da jovem médica, ao revelar a rotina de uma profissional dedicada aos mais humildes. Na verdade, o argumento opta por não se concentrar somente no processo de investigação da personagem. As respostas, na verdade, estão atreladas ao trabalho de Davin, a sua zelosa relação com os pacientes e os seus realísticos atendimentos. O que, de fato, torna tudo muito verdadeiro aos olhos do público. Ao longo da película, inclusive, chama a atenção o esmero dos diretores ao traduzir o trabalho da médica, a sua delicada interação com os adoentados, preenchendo a trama com sequências naturalmente tensas.
O grande trunfo de A Garota Desconhecida, entretanto, reside na
profundidade com que os irmãos Dardenne exploram os conflitos de Davin.
Impulsionado pela rígida performance de Adéle Haenel (Amor à Primeira Briga),
intensa ao capturar o misto de frieza, humanidade e obsessão da médica, o longa não se
contenta com as respostas fáceis, com a típica jornada de redenção. À medida
que se aprofunda nos segredos em torno da fatídica morte, o argumento reforça o
escopo dramático ao explorar não só o sentimento de culpa dos envolvidos, como
também a triste realidade da vítima, dando uma importante voz póstuma a ela. Na
transição para o último ato, porém, a proposta naturalista da trama expõe os
pequenos problemas de ritmo da trama. Um dos pontos altos da filmografia dos
irmãos Dardenne, o roteiro se rende à soluções convenientes para amarrar as
pontas soltas. De uma hora para outra, os personagens passam a se encontrar de
maneira menos natural, as coincidências passam a se tornar mais recorrentes.
Somado a isso, algumas respostas simplesmente "caem no colo" da Drª
Davin, reduzindo o peso de alguns dos subaproveitados coadjuvantes.
Menos mal que, mesmo nestes momentos poucos inspirados, Jean e Luc
Dardenne esbanjam intimismo ao traduzir a densa jornada da protagonista, ao
capturar o desconforto impresso nas feições\gestos da jovem médica, embalando a trama
com expressivos planos fechados e uma (na maioria do
tempo) ritmada montagem naturalista. O senso de fluidez dos diretores, aliás, é
explorado em sua máxima potência num tenso plano sequência, um take "nervoso"
que, confesso, não esperava ver numa obra dos irmãos belga. Dito isso, dividido
entre o suspense e o drama, A Garota Desconhecida instiga ao dar uma roupagem
indiscutivelmente verdadeira a uma premissa positivamente (e infelizmente)
comum. Um filme sobre culpa, sobre um crime, mas também sobre a desigualdade em
solo europeu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário