quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Crítica | A Sombra do Pai

O fim e o recomeço

A Sombra do Pai é um thriller de Horror hipnotizante. Sob uma perspectiva lúdica e ao mesmo tempo visualmente\sonoramente suja, a criativa diretora Gabriela Amaral mostra a capacidade do cinema nacional em produzir filmes de gênero numa obra inquietante, reflexiva e espantosamente reconhecível. Tal qual os melhores representantes do segmento, o longa usa o sinistro como uma ponte para uma discussão mais profunda e repleta de camadas, transitando por temas do nosso dia a dia ao invadir a intimidade de uma família devassada pelo vazio, pelo luto e pela disfuncionalidade em tempos sombrios. Me arrisco a dizer, na verdade, que estamos diante de um dos filmes de zumbi mais originais dos últimos anos. Fazendo jus ao subgênero revigorado pelo mestre George Romero, sabiamente reverenciado por aqui, Gabriela esbanja perspicácia ao preencher a trama com um potente comentário social, se apropriando de elementos clássicos do cinema de horror com um toque tipicamente nacional.



Impressiona, para começar, a sagacidade com que Gabriela Amaral invade o universo dos filmes de Terror sem nunca se prender demais a um só “nicho” do gênero. Se é para brincar com um formato tão clássico, por que não propor uma improvável mistura? Por que não, numa mesma obra, abraçar elementos do horror social, dos suspenses fantasmagóricos, das crendices brasileiras e (claro!) dos ‘zombie movies’? Uma combinação que, de fato, faz todo o sentido aqui, em especial pelo ponto de vista no qual o longa é narrado. A partir do olhar curioso da solitária Dalva (Nina Medeiros), uma garotinha fã de filmes de terror acostumada a conviver com as “mandigas” da sua querida tia (Luciana Paes), a cineasta encontra na peculiar protagonista o caminho ideal para flutuar com inteligência entre o real e o fantástico. Entre o peso dos fatos narrados e a forma com que ela reage a eles. Dois anos após perder a sua mãe, a precoce garotinha se vê a mercê do seu “quebrado” pai, o abatido Jorge (Júlio Machado), buscando na “magia” uma alternativa para tentar corrigir o curso da sua família. Quando um acidente na obra em que ele trabalhava abala de vez a estrutura emocional do patriarca, Dalva decide cruzar uma perigosa linha em busca de um recomeço, sem sequer desconfiar das consequências em torno dos seus mais inocentes pedidos.


Fiel ao clima de ambiguidade narrativa do primeiro ao último minuto de projeção, Gabriela Amaral escancara a partir da perspectiva de Dalva um cenário duro e muito reconhecível. Logo cedo ela é obrigada a enfrentar algo que não condizia com a sua faixa etária. É obrigada a assumir responsabilidades, a viver num ambiente sujo, devastado, triste, solitário. Por trás de tudo isso, porém, ainda existia uma criança. Uma garotinha com crenças inusitadas. Com uma vontade imensurável de reencontrar a sua mãe. Sem a intenção somente de construir um thriller de horror instigante, a realizadora é cuidadosa ao extrair da sinistra atmosfera fantástica respostas, ao encontrar as brechas necessárias para desenvolver o drama dos personagens, ao estabelecer a relação disfuncional entre filha e pai e os motivos para isso. No fim, é fácil comprar tanto o escapismo paranormal dela, quanto a corrosiva realidade dele. Tudo é muito real. A dor é facilmente compreendida. Tal qual um zumbi, Jorge “apodrece” diante do público. O seu corpo é contaminado pelo vazio, pelo desespero, pela falta de perspectiva, de amor. A ferida, aqui, pode até parecer real (numa genial reverência às convenções do subgênero), mas é principalmente emocional. E ela o consome rápido. O zumbi “come” da própria carne. Sem querer revelar muito, o longa esbanja originalidade ao dar uma roupagem genuinamente ‘zombie’ à crise de identidade da figura paterna, culminando na brilhante cena em que ele tenta repentinamente trazer um pouco de “normalidade” a rotina da sua família.


Impressiona, aliás, como, mesmo por vezes lacônico e recheado de silêncios, o roteiro assinado pela própria Gabriela Amaral invade a intimidade dos dois com intensidade e profundidade. Embora, num primeiro momento, a trama custe um pouco a engrenar, a diretora compensa ao gradativamente preencher este desconcertante arco familiar com temas cada vez mais complexos e soturnos. Impulsionado pelas marcantes performances de um introspectivo Júlio Machado e de uma reativa Nina Medeiros, Gabriela consegue dar voz (e compreender) os dois lados desta moeda, situar o público quanto a real ameaça que os cerca. Um antagonista impiedoso. Se, sob a óptica mundana de Jorge, A Sombra do Pai é enfático ao tecer poderosos comentários sobre a crise econômica, o fantasma do desemprego, o excruciante efeito do luto e os perigos em torno do “vírus” da depressão, sob a perspectiva alegórica de Dalva o longa extrapola as barreiras da realidade ao discutir o quão tortuoso poder ser o processo que separa o fim de um eventual recomeço. O resultado é um clímax provocante e hipnótico, um desfecho visualmente impactante e dramaticamente ambíguo que casa brilhantemente com o realismo sinistro proposto pela obra. Um predicado, diga-se de passagem, potencializado pelo clima de imersão desconfortável desenvolvido por Gabriela. Por mais que, narrativamente, a complicada interação entre Dalva e Jorge cause uma natural aflição, a cineasta reforça a sensação ao situar a trama num cenário cinza e oco. Ao invés de se apoiar em sustos fáceis, ela faz o caminho mais difícil ao imprimir em tela a amargura dos personagens. O ambiente diz muito sobre eles, sobre aquilo que falta a eles e sobre o distorcido senso de escapismo de cada um deles. Enquanto a soturna fotografia de Barbara Alvarez realça o vazio com enquadramentos fechados por vezes claustrofóbicos, o ruidoso desenho de som aflige ao não permitir que fujamos deste cenário. Ele se faz presente, ele se faz incomodo.


Mais do que simplesmente reverenciar títulos do quilate A Noite dos Mortos Vivos (1968), Cemitério Maldito (1989) e O Labirinto do Fauno (2008), A Sombra do Pai surpreende ao tirar do papel a meu ver um novo tipo de ‘zombie movie’. Com um pé na fantasia e outro na realidade, Gabriela Amaral repete o triunfo de As Boas Maneiras ao conseguir se apropriar de elementos clássicos do cinema de horror hollywoodiano sem abdicar do imaginário tupiniquim, dando vida a um filme de gênero capaz de (quem sabe?) “contaminar” o público e uma nova safra de realizadores.

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