A Sombra do Pai é um thriller de
Horror hipnotizante. Sob uma perspectiva lúdica e ao mesmo tempo
visualmente\sonoramente suja, a criativa diretora Gabriela Amaral mostra a
capacidade do cinema nacional em produzir filmes de gênero numa obra
inquietante, reflexiva e espantosamente reconhecível. Tal qual os melhores representantes
do segmento, o longa usa o sinistro como uma ponte para uma discussão mais
profunda e repleta de camadas, transitando por temas do nosso dia a dia ao
invadir a intimidade de uma família devassada pelo vazio, pelo luto e pela
disfuncionalidade em tempos sombrios. Me arrisco a dizer, na verdade, que
estamos diante de um dos filmes de zumbi mais originais dos últimos anos. Fazendo jus ao subgênero revigorado pelo mestre George
Romero, sabiamente reverenciado por aqui, Gabriela esbanja perspicácia ao
preencher a trama com um potente comentário social, se apropriando de elementos
clássicos do cinema de horror com um toque tipicamente nacional.
Impressiona, para começar, a sagacidade
com que Gabriela Amaral invade o universo dos filmes de Terror sem nunca se
prender demais a um só “nicho” do gênero. Se é para brincar com um formato tão
clássico, por que não propor uma improvável mistura? Por que não, numa mesma obra,
abraçar elementos do horror social, dos suspenses fantasmagóricos, das
crendices brasileiras e (claro!) dos ‘zombie movies’? Uma combinação que, de
fato, faz todo o sentido aqui, em especial pelo ponto de vista no qual o longa
é narrado. A partir do olhar curioso da solitária Dalva (Nina Medeiros), uma garotinha
fã de filmes de terror acostumada a conviver com as “mandigas” da sua querida
tia (Luciana Paes), a cineasta encontra na peculiar protagonista o caminho
ideal para flutuar com inteligência entre o real e o fantástico. Entre o peso
dos fatos narrados e a forma com que ela reage a eles. Dois anos após perder a
sua mãe, a precoce garotinha se vê a mercê do seu “quebrado” pai, o abatido
Jorge (Júlio Machado), buscando na “magia” uma alternativa para tentar corrigir
o curso da sua família. Quando um acidente na obra em que ele trabalhava abala
de vez a estrutura emocional do patriarca, Dalva decide cruzar uma perigosa
linha em busca de um recomeço, sem sequer desconfiar das consequências em torno
dos seus mais inocentes pedidos.
Fiel ao clima de ambiguidade narrativa
do primeiro ao último minuto de projeção, Gabriela Amaral escancara a partir da
perspectiva de Dalva um cenário duro e muito reconhecível. Logo cedo ela é
obrigada a enfrentar algo que não condizia com a sua faixa etária. É obrigada a
assumir responsabilidades, a viver num ambiente sujo, devastado, triste,
solitário. Por trás de tudo isso, porém, ainda existia uma criança. Uma
garotinha com crenças inusitadas. Com uma vontade imensurável de reencontrar a
sua mãe. Sem a intenção somente de construir um thriller de horror instigante,
a realizadora é cuidadosa ao extrair da sinistra atmosfera fantástica
respostas, ao encontrar as brechas necessárias para desenvolver o drama dos
personagens, ao estabelecer a relação disfuncional entre filha e pai e os
motivos para isso. No fim, é fácil comprar tanto o escapismo paranormal dela,
quanto a corrosiva realidade dele. Tudo é muito real. A dor é facilmente
compreendida. Tal qual um zumbi, Jorge “apodrece” diante do público. O seu corpo
é contaminado pelo vazio, pelo desespero, pela falta de perspectiva, de amor. A
ferida, aqui, pode até parecer real (numa genial reverência às convenções do
subgênero), mas é principalmente emocional. E ela o consome rápido. O zumbi “come”
da própria carne. Sem querer revelar muito, o longa esbanja originalidade ao
dar uma roupagem genuinamente ‘zombie’ à crise de identidade da figura paterna,
culminando na brilhante cena em que ele tenta repentinamente trazer um pouco de
“normalidade” a rotina da sua família.
Impressiona, aliás, como, mesmo por
vezes lacônico e recheado de silêncios, o roteiro assinado pela própria
Gabriela Amaral invade a intimidade dos dois com intensidade e profundidade. Embora,
num primeiro momento, a trama custe um pouco a engrenar, a diretora compensa ao
gradativamente preencher este desconcertante arco familiar com temas cada vez
mais complexos e soturnos. Impulsionado pelas marcantes performances de um
introspectivo Júlio Machado e de uma reativa Nina Medeiros, Gabriela consegue
dar voz (e compreender) os dois lados desta moeda, situar o público quanto a
real ameaça que os cerca. Um antagonista impiedoso. Se, sob a óptica mundana de
Jorge, A Sombra do Pai é enfático ao tecer poderosos comentários sobre a crise
econômica, o fantasma do desemprego, o excruciante efeito do luto e os perigos
em torno do “vírus” da depressão, sob a perspectiva alegórica de Dalva o longa
extrapola as barreiras da realidade ao discutir o quão tortuoso poder ser o
processo que separa o fim de um eventual recomeço. O resultado é um clímax
provocante e hipnótico, um desfecho visualmente impactante e dramaticamente
ambíguo que casa brilhantemente com o realismo sinistro proposto pela obra. Um
predicado, diga-se de passagem, potencializado pelo clima de imersão desconfortável
desenvolvido por Gabriela. Por mais que, narrativamente, a complicada interação
entre Dalva e Jorge cause uma natural aflição, a cineasta reforça a sensação ao
situar a trama num cenário cinza e oco. Ao invés de se apoiar em sustos fáceis,
ela faz o caminho mais difícil ao imprimir em tela a amargura dos personagens.
O ambiente diz muito sobre eles, sobre aquilo que falta a eles e sobre o
distorcido senso de escapismo de cada um deles. Enquanto a soturna fotografia de
Barbara Alvarez realça o vazio com enquadramentos fechados por vezes
claustrofóbicos, o ruidoso desenho de som aflige ao não permitir que fujamos
deste cenário. Ele se faz presente, ele se faz incomodo.
Mais do que simplesmente
reverenciar títulos do quilate A Noite dos Mortos Vivos (1968), Cemitério
Maldito (1989) e O Labirinto do Fauno (2008), A Sombra do Pai surpreende ao
tirar do papel a meu ver um novo tipo de ‘zombie movie’. Com um pé na fantasia
e outro na realidade, Gabriela Amaral repete o triunfo de As Boas Maneiras ao
conseguir se apropriar de elementos clássicos do cinema de horror hollywoodiano
sem abdicar do imaginário tupiniquim, dando vida a um filme de gênero capaz de (quem
sabe?) “contaminar” o público e uma nova safra de realizadores.
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