Shazam! não surtiu o efeito
esperado junto ao público ao redor do mundo. “Encaixotado” entre os aguardados
lançamentos de Capitã Marvel e do arrasa-quarteirões Vingadores: Ultimato, a
descontraída nova aposta da DC foi até bem recebida pela crítica, mas ficou bem
abaixo do esperado no que diz respeito a bilheteria (US$ 364 milhões) e
repercussão. O que me leva a crer que muita gente sequer viu o filme. Essa, na
verdade, seria a minha única explicação para tamanho desdém. Até porque estamos
diante de uma das obras mais legais do gênero desde Guardiões da Galáxia
(2014). Embora vacile em alguns aspectos bem reconhecíveis aos olhos do fã do
segmento, o longa dirigido por David F. Sandberg (Anabelle 2) conseguiu
entender o espírito da coisa ao entregar uma aventura escapista sem um pingo de
vergonha de se assumir como tal. Uma obra colorida, leve e irreverente capaz de
fundir a disfuncionalidade dos filmes família com a energia do gênero
super-heroico. O resultado é uma mistura original e revigorante conduzida por
um cineasta com um forte senso imagético.
Sem a intenção de ser o
Homem-Aranha: De Volta ao Lar da DC, o que, dado o universo dos protagonistas e
as faixas etárias deles faria até sentido, Shazam! surpreende ao adotar um tom menos
‘teen’ e mais familiar. Por mais que a referência à títulos como Quero Ser
Grande e Esqueceram de Mim sejam óbvias, o longa opta por falar a linguagem do
seu público alvo. Ser mais atual e menos nostálgico. O foco está na garotada.
Naqueles que irão se reconhecer na figura de Billy e dos seus irmãos. Um dos
principais trunfos da produção, o roteiro assinado por Henry Gayden é astuto ao
estabelecer a origem do super-herói sem esquecer de se aprofundar nos conflitos
do jovem por trás do uniforme vermelho. E isso sem soar piegas ou bater em teclas
já saturadas. Em Shazam! o que vemos é uma inversão clara. David F. Sandberg se
encanta muito mais pelo errático Billy Batson (Asher Angel) do que pela sua
versão super (Zachari Levy). O que, a meu ver, faz todo o sentido. Por mais que
as passagens mais empolgantes da obra se deem quando os dois se fundem, é legal
ver o cuidado do diretor em trabalhar as inúmeras facetas do personagem. Seja o
seu lado mais rebelde e amargurado, seja a sua face mais imatura e egoísta.
Billy é um tipo falho, humano. O seu poder nasce disso, da sua imperfeição. Ao
longo do arco do personagem, Sandberg mostra perspicácia ao renegar o velho
clichê do coração puro. Neste aspecto, Shazam! surge com uma visão bem atual. O
mundo em que vivemos é duro e ambíguo. Cada vez mais cedo aprendemos a temer.
Um passo em falso pode separar os heróis dos vilões. Uma linha tênue que
poderia até ser melhor explorada dentro da história.
Embora a visão de realidade
proposta pelo argumento seja por si só bastante escapista, nas entrelinhas David
F. Sanberg consegue renegar o discurso moralista quase sempre embutido nos
títulos do gênero. Em especial nos do selo DC. Esqueça o altruísmo absoluto do
Superman, o inabalável senso de justiça da Mulher-Maravilha, a obstinada noção
de proteção do Batman. Shazam! é um herói moleque (literalmente), falível,
livre do “com grandes poderes vem grandes responsabilidades”. Ele só quer curtir
a brincadeira, experimentar o mundo sob uma perspectiva empoderada e
ocasionalmente salvar o dia. Após um primeiro ato redondo e bem tradicional,
Sandberg quebra as nossas expectativas ao tratar a jornada de descoberta do
garoto sob uma perspectiva genuinamente cômica. No melhor estilo MCU, o esperto
argumento amplia o universo DC a partir da perspectiva de dois jovens, transformando
a amizade entre Billy\Shazam! e o seu entusiasmado “irmão” Freddy (Jack Dylan
Grazer) na bussola da obra. Os dois ditam o tom da película com diálogos
engraçadíssimos, inúmeras referências aos filmes passados, troca de
experiências, rusgas e muita aventura. Assim como qualquer adolescente, eles
não sabem muito bem o que estão fazendo. O que só torna tudo mais engraçado e
cativante. Sandberg, na verdade, é particularmente habilidoso ao não entregar
um super-herói pronto. Longe disso. Por mais que o arco pessoal do personagem
seja muito bem construído, o elemento super é trabalhado com enorme
descontração, o que explica a completa falta de domínio dele sobre os seus
poderes. Algo que confere um charme todo especial a obra.
Um predicado potencializado pela
radiante performance de Zachary Levi. Confesso que, na época do anúncio, não
achei uma grande contratação. O seu entusiasmo durante a produção e na campanha
de marketing, porém, logo me provaram o contrário. Com o seu afiado ‘timing’
cômico e uma extraordinária química com o espontâneo Jack Dylan Grazer, Levi
entrega um Shazam! perfeito, capturando o misto de força, imaturidade,
inocência e empolgação com naturalidade. Ele consegue brilhar mais do que o seu
espalhafatoso uniforme. Quem também merece elogios é David F. Sandberg. Oriundo
do cinema de Horror, o promissor realizador entrega um dos filmes de
super-heróis mais visualmente bonitos dos últimos anos. Tudo é muito colorido,
muito vistoso, muito particular. Por mais que as sequências de ação não tenham
tanto peso\originalidade assim, ele compensa ao capturar a plasticidade do
gênero. Os heróis são imponentes e imagéticos. Os vilões são sombrios e
assustadores. A expressiva câmera lenta e a luminosa fotografia de Maxime
Alexandre (A Freira) só ajudam a realçar tudo isso. A mistura de humor,
aventura e drama familiar. O calcanhar de Aquiles do DC Universe, o CGI é
explorado com bastante inventividade aqui, em especial na confecção dos
monstrengos Sete Pecados Capitais. Gostei muito, aliás, da riqueza de detalhes
no design deles. Uma visão mais gargulesca. Enquanto a gula é uma boca gigante
que mais lembra uma planta carnívora, a inveja é um ser decrépito com um olhar
ameaçador, a avareza é um monstro com quatro braços. Curti o conceito.
O que impede Shazam! de estar no
panteão dos melhores filmes de heróis dos últimos anos, entretanto, é o seu
insosso vilão. Se o digitalizado Hades de Mulher-Maravilha ao menos serviu para
o avançar da trama, o maquiavélico Drº Silvana (Mark Strong) não parece em
momento algum pertencer ao universo escapista pensado por David F. Sandberg.
Por mais que a sua primeira aparição seja positiva e ajuda a criar o elo entre
ele e o jovem Billy, o desenvolvimento do antagonista é frágil. Ele não tem um
arco dentro da trama. Ele não ameaça. Ele não impressiona. O argumento não
consegue em momento algum explorar o claro potencial dramático do personagem e
a sua rancorosa motivação. Para piorar, o talentoso Mark Strong não conseguiu entender
o espírito da coisa. Ao contrário de Zachery Levi, o eclético ator tenta
conferir ao texto um peso desnecessário, bastante vilanesco, renegando a
proposta descompromissada da obra sempre que brota em cena.
Contando ainda com uma das cenas
finais mais legais (me arrisco a dizer) da história recente do gênero, Shazam! é
uma aventura dinâmica e empolgante ideal para qualquer um que queira se
divertir. Com uma identidade própria em relação aos últimos lançamentos da DC,
o longa só ajuda a reforçar os indícios de que a gigante dos quadrinhos está no
caminho certo quanto ao seu universo cinematográfico, algo que deve servir de
alento para os fãs do segmento. Em especial aos da nova geração. Uma pena,
porém, que o longa tenha sido lançado numa brecha do calendário tão ingrata.
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