Yorgos Lanthimos não é um diretor
fácil. Quem viu o exótico O Lagosta sabe o que eu estou falando. Seus filmes são
divisivos porque é exatamente isso que ele quer. Estamos diante de um
verdadeiro provocador, um realizador capaz de se debruçar sobre temas reconhecíveis
de maneira densa e ao mesmo tempo debochada. Uma característica que se repete
no seu mais novo projeto. Embora bem mais “palatável” que o seu primeiro grande
‘hit’ hollywoodiano, o impactante A Favorita é o tipo de obra que parece se
orgulhar da sua imprevisibilidade. Da sua fascinante capacidade em testar as
nossas expectativas do primeiro ao último minuto de projeção. Com uma afiada
visão satírica sobre os “comentados” bastidores da corte britânica no século
XVII, Lanthimos nos induz ao erro ao transformar um requentado ‘plot’ sobre o
jogo de poder palaciano num profundo estudo sobre as carências, as ambições e o
grito de independência de três ardilosas mulheres em busca de empoderamento, revigorando
o cenário dos filmes de época ao trazer a ferocidade feminina para o centro da
equação. E isso, obviamente, sob uma perspectiva indescritivelmente cínica,
potencializada pelas soberbas performances de Olivia Colman, Emma Stone e
Rachel Weisz.
Inspirado em três personagens
reais, a Rainha Anne, a sua fiel escudeira Sarah e a empregada Abigail viveram
entre nós e (segundo consta) experimentaram uma dinâmica próxima a apresentada
no filme, Yorgos Lanthimos reinterpreta os fatos com passionalidade na
tentativa de modernizar estes três respectivos arcos. Uma missão sempre
espinhosa que, felizmente, é bem-sucedida aqui, muito em função do esmero do
roteiro assinado por Deborah Davis e Tony McNamara em se concentrar nos dilemas
femininos das três protagonistas. Até porque, nos momentos em que não foca na
intimidade do trio, A Favorita não perde a oportunidade de debochar de tudo o
que cercava a nobreza da época. Esqueça, portanto, a imponência, a elegância, a
pretensa superioridade. Na visão do realizador grego, os bastidores da vida de
uma rainha são um tanto quanto vexatórios. A intenção dele não é mostrar a
realidade. Lanthimos se encanta pelo exagero, pela a oportunidade de rir
daqueles que tanto oprimiram. Os personagens masculinos, por exemplo, são em
sua grande maioria risíveis. Meros peões nas mãos das mulheres. Elementos como
a ridícula maquiagem só potencializam essa sensação. Toda a rotina no castelo
soa absurda, quase cartunesca, o que rende situações indiscutivelmente
hilárias. Confesso, porém, que num primeiro momento cheguei a temer pelo rumo
que a trama tomaria, principalmente quando o assunto é a histriônica visão
inicial da rainha. Anne é apresentada como um arquétipo, uma figura poderosa
refém dos seus prazeres, da sua fragilidade física\emocional. Uma abordagem caricata
que seria difícil de engolir ao longo das quase duas horas de película.
Não demora muito, porém, para
captarmos as reais intenções de Yorgos Lanthimos. A sua tentativa em desconstruir
a visão imatura\preconceituosa que muitos fizeram desta curiosa figura
história. Um estudo de personagem complexo que ganha contornos irresistíveis no
momento em que ela se torna o objeto de desejo de duas outras mulheres com sede
de poder. Sem medo de errar, A Favorita é um dos raríssimos filmes da atualidade
que atinge o seu ápice na sua fase de desenvolvimento. Numa sagaz subversão narrativa, o
diretor grego empolga ao se distanciar do ‘background’ político, se
concentrando no aspecto íntimo ao tratar a busca por confiança e influência como o grande
objetivo. Sob uma perspectiva genuinamente feminina, ele arquiteta um
insinuante jogo de intrigas e manipulações, se deliciando com a ardilosidade e a faceta sedutora
de Sarah e Abigail na busca pelo “afeto” da Rainha Anne. A rigor, estamos
diante da luta de duas mulheres por empoderamento, duas figuras dispostas a
praticamente tudo para permanecer no controle da situação. Por trás de
objetivos aparentemente maquiavélicos, entretanto, Lanthimos esconde questões
bem mais densas e humanas. Embora a troca de farpas entre as duas confidentes
da rainha se revele o agente catalisador da obra, o argumento é cuidadoso ao ir
além do confronto, ao tentar realmente entender o que movia estas três
mulheres. Ao longo do precioso segundo ato, o realizador mostra sensibilidade
ao enxergar através das ambições, ao se enternecer pela amargura solitária de
Anne, ao compreender o esforço de Abigail na tentativa de não voltar a
experimentar a dor de um passado tão recente, ao valorizar os reais sentimentos
de Sarah para com a figura da rainha. Como não citar, por exemplo, a
desconcertante sequência em que a nova favorita decide ir “brincar” com os
coelhos, um momento aparentemente inofensivo que tem muito a dizer sobre o sofrido estado emocional da monarca. E isso sem sacrificar a tóxica dinâmica entre as
personagens.
Como disse acima, porém, Yorgos
Lanthimos não é um diretor adepto das soluções fáceis. O que fica bem claro no
inchado último ato. No momento em que as suas pretensões dramáticas começam a
falar mais alto, o diretor deixa escapar as rédeas da trama ao se alongar em
algumas resoluções. Se por um lado o longa é muito inteligente ao mostrar os
perigos escondidos na ambição e no desejo, vide a inquietante cena final, por
outro peca ao investir tempo demais em situações\personagens naquele momento
dispensáveis. O que, de certa forma, reduz o tempo de tela das três
protagonistas juntas e ajuda a explicar a gritante queda de ritmo. Menos mal
que, mesmo neste terço mais errático, Lanthimos compensa ao escancarar os
espólios desta guerra fria de sentimentos, testando as nossas expectativas ao
mostrar o quão tênue (e cruel) pode ser a linha entre vencedores e derrotados
quando alguns limites são ultrapassados. Um desfecho totalmente coerente e que
(mais uma vez) só ajuda a atestar a acidez deste virtuoso realizador. Fazendo
jus ao cenário de época, aliás, Lanthimos desfila o seu refinado repertório
estético na reconstrução dos imponentes ambientes palacianos, nos brindando com
sequências imageticamente estonteantes. Num ‘mise en scene’ complexo, o diretor
ora parece bailar em torno das suas personagens, ora parece persegui-las, transitando
entre elegantes planos simétricos, imersivos planos intimistas e engenhosos planos
angulados com espantosa fluidez. Somado a isso, graças a texturizada fotografia
em tons amadeirados do indicado ao Oscar Robbie Ryan, Lanthimos eleva o nível
da obra ao rodar o longa apenas com iluminação natural, fazendo um precioso uso
dos luminosos contra-luz nas expansivas sequências abertas e de elementos cênicos
(velas, candelabros) nas sigilosas cenas mais íntimas. Os expressivos caras e
bocas de Emma Stone, em especial, nunca foram tão bem capturados.
No final das contas, porém,
apesar dos méritos estéticos\narrativos, A Favorita é um filme de atrizes e são
elas que transformam o longa numa produção memorável. Um daqueles rostos que
mereciam ser mais valorizados pela indústria, Olivia Colman dita o rumo da
obra com uma performance arrasadora. Ela é forte quando quer ser, vulnerável
quando tem que ser, histérica quando precisa ser. Ao longo da produção
conhecemos a rainha carente, a nobre glutona, a mãe devastada, a mulher capaz
de conseguir aquilo que queria. Todo o naturalista processo de deterioração
física da personagem é traduzido com primazia por Colman, alcançando o seu
ápice na simbólica cena final. Ali, e só ali, conhecemos a face “monarca” dela,
mostrando a capacidade do argumento (e da obra como um todo) em subverter as
nossas impressões sobre a real vencedora desta briga. Um duelo agressivo guiado
com vigor pelas magnéticas Rachel Weisz e Emma Stone. Interiorizando a
independência da sua Sarah com louvor, a estrela de A Múmia e Constantine
desfila charme, poder e elegância com ímpeto, entregando uma mulher capaz de
lutar pelo que é seu sem sacrificar os seus “princípios”. Do outro lado da
equação, Stone preenche a tela com a sua energia juvenil, externando o melhor e
o pior da sua Abigail, uma mulher imparável movida pelas suas traumáticas
experiências. Embora sempre radiante, a jovem atriz esbanja maturidade ao,
quando necessário, escancarar os seus conflitos mais íntimos, ao permitir que
o público enxergue além dos seus (por vezes odiosos) atos.
No embalo destas marcantes performances
e do singular uso da trilha sonora clássica, A Favorita provoca um misto de
sensações ao revelar a degradante jornada de três mulheres na luta por
empoderamento. Mesmo nos momentos mais exagerados, alguns de gosto bem duvidoso,
Yorgos Lanthimos imprime em tela a sua cínica assinatura ao refletir, a partir
de um contexto específico, sobre dilemas femininos bem universais, desconstruindo
arquétipos e o ‘status quo’ de personagens reais ao defender que algumas
lacunas são impossíveis de serem substituídas.
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