Desde que o 'feel good movie' Intocáveis (2011) se tornou um estrondoso sucesso ao redor do mundo, o cinema pipoca
francês se viu “tentado” a investir pesado neste agridoce subgênero. Nos
últimos anos, como esperado, a produção de títulos do segmento cresceu
exponencialmente por lá, mas poucos, bem poucos, conseguiram alcançar um status
semelhante ao redor do mundo. Por aqui, de fato, os mais comentados
recentemente foram A Família Belier (2014) e Bem-Vindo à Marly-Gomont (2016), dois
cativantes dramas familiares de fácil identificação com o grande público. Com
potencial para repetir o impacto das produções citadas acima, Sementes Podres
esbanja bom-humor ao escancarar os problemas sociais enfrentados por muitos
jovens em território francês. Dirigido, roteirizado e estrelado pelo
carismático Kheiron, a mais nova produção original Netflix causa um misto de
sensações ao invadir uma realidade reconhecível aos olhos de muitos ao redor do
mundo, transitando com sensibilidade entre a comédia e o drama ao mostrar como
a resiliência pode ser facilmente transformada em aprendizado.
Num momento em que o drama dos
imigrantes ilegais tem causado uma grande comoção em solo Europeu, Sementes
Podres é enfático ao mostrar a importância de uma segunda chance. Claramente
inspirado por títulos como Meu Mestre, Minha Vida (1989), Mudança de Hábito 2
(1993) e Mentes Perigosas (1995), Kheiron investe numa abordagem revigorante ao
acompanhar os passos do malandro Wael, um trambiqueiro de segunda que, com a
ajuda da sua compreensiva mãe adotiva, interpretada pela sempre magnética
Catherine Deneuve, vivia de pequenos (e inofensivos) golpes no estacionamento
de um supermercado. Quando um velho conhecido descobre as artimanhas dos dois,
no entanto, ele é obrigado a dar uma de professor substituto para uma turma de
desajustados alunos, cobrindo uma lacuna enquanto o novo tutor era selecionado.
Com a missão de convencê-los a voltar para uma segunda aula, Wael decide usar
os seus truques para buscar um sincero diálogo com eles, sem sequer desconfiar
que tinha muito a oferecer a eles.
Sejamos bem claros, Sementes
Podres não é um filme impecável. Por trás da sua aura inspiradora existem algumas
evidentes conveniências narrativas. A começar, por exemplo, pelo ‘plot’ da trama, a ideia de um homem sem qualquer tipo de formação assumir uma turma com
tantos problemas. Por mais que o argumento passe bem a ideia de abandono dos
jovens, a sensação de que eles eram quase irrecuperáveis, toda a trama se
sustenta numa solução que soa naturalmente forçada. Para piorar, como num passe
de mágica, Wael parece preparado demais para lidar com os jovens. Confesso que,
neste primeiro momento, cheguei a duvidar do potencial dramático do script, da
capacidade de Kheiron em tratar com a devida seriedade um tema tão real. A
impactante sequência de abertura, porém, me fez dar um voto de confiança a
obra. E, para a minha surpresa, não demorou muito para o realizador me
convencer que havia verdade em tudo aquilo. Com um afiadíssimo senso de humor e
dinamismo, ele é astuto ao trazer a experiência nas ruas do comunicativo
Wael para o centro da trama. Embora a sua falta de formação fosse óbvia,
existia uma lógica no modo de agir do improvisado tutor, um processo de
conquista de confiança (me arrisco a dizer) brilhantemente construído pelo
roteiro. Sem querer revelar muito, o longa encanta ao valorizar o poder do
diálogo, a empatia e a capacidade de compreender\ser compreendido, uma troca de
experiências cativante que rende sequências ora engraçadíssimas, ora reflexivas.
E isso sem um pingo de moralismo, o que torna tudo mais singular\refrescante.
O grande trunfo de Sementes
Podres, entretanto, fica pela sagacidade de Kheiron em investigar a infância de
Wael e como ela ajudou a moldar o homem por trás de lições tão sabias.
Transitando entre o presente o passado do protagonista com desenvoltura, ele surpreende ao investir numa bem montada narrativa não linear, resgatando
algumas das suas memórias mais íntimas\reprimidas à medida que ele se depara com
os conflitos dos seus “protegidos”. Mesmo sem nunca abrir mão do humor, sempre
que necessário o diretor encontra as brechas necessárias para tocar em temas
pesados, buscando se aprofundar ao falar sobre violência urbana, abusos
sexuais, precocidade juvenil e outros males que muitos adolescentes se vem
expostos ao redor do mundo. Embora pese a mão aqui ou ali, um dos flashbacks mais
impactantes da obra me soou um tanto quanto improvável, Kheiron compensa ao
tirar do papel cenas genuinamente desconcertantes, a maior parte delas filmadas
com inegável maturidade. Como não citar, em especial, a cena que uma das suas
alunas faz uma dolorosa confissão, um take fortíssimo em que mesmo sem expor a
face da personagem em questão ele consegue capturar o misto de medo, vergonha e
desespero dela. O mesmo, aliás, podemos dizer das passagens envolvendo o pequeno
Wael. Com planos abertos e alguns virtuosos movimentos de câmera, Kheiron exibe
recursos ao traduzir a vulnerabilidade do garotinho num cenário de caos, capturando
as crueldades enfrentadas\vistas por ele sempre sob a sua perspectiva. Um
predicado valorizado pela emocionante performance de Aymane Wardane, que, graças a delicadeza do realizador em extrair a dor dos
olhos infantis, ajuda a reforçar o potencial dramático da obra.
Por trás do amargor destas
passagens mais duras, porém, Sementes Podres também revigora ao estreitar os
laços entre os agradáveis personagens. Embora o longa se prenda demais a figura
de Wael, o que explica a pressa do argumento em arrematar os (densos) arcos de
alguns dos alunos, Kheiron é cuidadoso ao dar uma reconhecível voz a cada um
dos “desajustados”. Através de diálogos ágeis e em sua maioria engraçados, o
diretor consegue pouco a pouco entendê-los melhor, expondo as suas respectivas
realidades com propriedade. Estamos diante de jovens comuns, com anseios e
frustrações universais. Enquanto uns tinham problemas mais sérios para encarar,
como o caladão Ludo (Youssouf Wague, intenso) e a irritadiça Shana (Louison
Blivet, numa atuação complexa), outros só queriam se fazer entender, como a
inteligente Nadia (Louison Blivet, expansiva) e o galanteador Fabrice (Adil
Dehbi, puro carisma). Um grupo diversificado que, graças a sagacidade do
roteiro em exaltar a disfuncional relação entre eles, tem muito a dizer sobre a
realidade da juventude num cada vez mais miscigenado solo francês. Por fim, a
cereja do bolo da película fica pela descomplicada relação entre Wael e a sua
zelosa figura materna, a compreensiva Monique. Impulsionado pela soberba
performance de Catherine Deneuve, Kheiron acerta ao confiar plenamente na
evidente química entre os dois, arrancando sucessivas gargalhadas ao revelar o
inusitado esforço dela para manter o filho longe dos problemas.
Mesmo flertando com o melodrama
ali, com uma solução formulaica aqui, Sementes Podres emociona ao defender que
nenhum jovem merece ser tratado como irrecuperável. Com plena convicção na
mensagem por trás da sua obra, o que – obviamente – se reflete na sua persuasiva
performance, Kheiron se esforça para ir além da casca, conseguindo pintar em
tela um cenário infelizmente reconhecível ao redor do mundo. E isso sob uma agridoce
perspectiva esperançosa, um bem-vindo sopro de luz num momento em que as
pessoas parecem muito mais preocupadas em julgar do que tentar compreender.
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11 comentários:
Muito bom, captou a essência do filme.
Obrigado pela visita e pelo comentário.
Uma delicia de filme! Catherine Deneuve em atuação fabulosa
Realmente. Vi sem grandes pretensões e curti muito. Como é bom ver nomes como os de Catherine Deneuve ainda brilhando em bons papéis. Valeu pelo comentário.
Muito boa análise. Só achei a nota baixa, merece 4 estrelas.
Romes 3 estrelas e meia é muito bom. HAHAHAHA Senti que faltou um pouquinho para ser quatro estrelas. Um pouco mais de sutileza em alguns momentos talvez. Mas é um drama muito competente e inspirador. Valeu pela visita e pelo comentário Romes.
Bom comentário. Achei um excelente filme, simples e cativante. Me faz pensar em esperança na humanidade. Na minha nota, daria 5 estrelas
Bom comentário. Achei um excelente filme, simples e cativante. Me faz pensar em esperança na humanidade. Na minha nota, daria 5 estrelas
Valeu Yoshiaki. Que bom que você gostou. Realmente é um filme com uma aura muito positiva, esperançosa mesmo. Obrigado pela visita.
Apaixonada assisto muito com meus filhos adolecentes.
Alguém sabe min dizer,quais São...COMUNICAÇÃO, ETICA, RESILIÊNCIA,
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