Sustentar um filme em um ou
poucos atores é sempre um trabalho muito desafiador. Para o público e
principalmente para o responsável por tirar a história do papel. Pode ser apenas
uma impressão minha, mas diante desta abordagem naturalmente intimista a nossa
percepção sobre a obra se torna mais aguçada. Os diálogos se revelam mais “audíveis”.
O visual mais relevante. Os passos em falsos mais evidentes. O que só atesta a
ambição por trás de títulos como IO. Uma mistura de Perdido em Marte (2015) com
Os Últimos na Terra (2015), o longa dirigido por Jonathan Helpert escancara as
suas virtudes e também os seus pecados ao discutir os mistérios da evolução
humana sob uma perspectiva indiscutivelmente singular. E de fato estamos diante
de uma obra intrigante. Embora o ritmo lento salte aos olhos em alguns momentos, a produção original Netflix
compensa ao propor uma realística visão de futuro pós-apocalíptico, prezando pelo aspecto
científico enquanto explora a dicotômica relação entre a razão e a emoção num ambiente praticamente sem vida. O
resultado é uma película com ideias inspiradas, outras superficiais, alguns
conceitos realmente inventivos, mas que, no final das contas, exige bastante do
espectador. Em especial atenção, paciência e uma inegável dose de boa vontade
quanto ao rumo anticlimático que o argumento decide tomar.
O que, de maneira alguma, quer
dizer que as opções tomadas pelo roteiro sejam ruins. Muito pelo contrário. Numa
época em que alguns realizadores atenuam o peso das suas obras na busca pela atenção
do público, títulos como IO surgem como um bem-vindo contraponto, uma película capaz de optar pelo caminho mais difícil na tentativa de promover a sua
mensagem. O problema, entretanto, fica pela forma como o filme é vendido para o
público. E, de fato, tanto o trailer, quanto o primeiro ato de IO sugerem algo
bem diferente do que o argumento assinado por Clay Jeter, Charles Spano e Will
Basanta se propõem a entregar. A rigor, num primeiro momento, nos deparamos com
um instigante thriller pós-apocalíptico de sobrevivência. Impulsionado pelo
precioso trabalho da equipe de direção de arte, pelos imperceptíveis efeitos
digitais na construção deste mundo devastado e pela imersiva condução de Jonathan Helpert, o longa impressiona ao
nos levar para uma Terra abandonada, um planeta saturado pela própria raça
humana que teve de fugir às pressas para uma lua de Júpiter quando o ar da
nossa atmosfera deixou de ser respirável. Diante da morte e do repentino êxodo,
porém, alguns decidiram ficar e buscar na ciência a esperança necessária para recuperar
o nosso habitat. Ao longo do terço inicial, Helpert é habilidoso ao estabelecer
a rotina de uma destas “sobreviventes”, a independente Sam (Margaret Qualley), uma jovem solitária
dedicada a causa do seu pai, o cientista Henry (Danny Huston), na busca por um
indício de que o nosso planeta estava pronto para o repovoamento. Inspirado por
obras como Wall-E e o já citado Perdido em Marte, o realizador conquista a
atenção do público ao narrar os passos desta resiliente protagonista, ao realçar
o seu otimismo, a sua coragem, os perigos em torno das suas incursões em área
contaminada e o seu forte apego pela vida na Terra. E isso sem nunca
sacrificar o viés científico que, apesar da complexidade dos conceitos
propostos, é abordado com leveza e propriedade.
O duelo Homem versus Natureza, no entanto, é logo abreviado com a
introdução de um terceiro personagem, o navegador Micah (Anthony Mackie). Um tipo
igualmente complexo que, embora seja decisivo para o rumo da trama, altera
também o ‘status quo’ da obra. Uma mudança de rumo que, verdade seja dita, nem
sempre funciona tão bem. É preciso elogiar, por exemplo, a ousadia de Jonathan
Helpert em reduzir ainda mais escopo da trama, que, a partir do segundo ato,
praticamente não deixa a instalação em que Sam habitava. Graças a esta
limitação, o argumento consegue em pouco tempo solidificar o elo entre dois
indivíduos de lados opostos de uma mesma equação. Enquanto ela, fiel à sua
racionalidade, seguia “presa” a existência na Terra e a esperança que haveria
uma luz no fim do túnel, ele, quebrado pela desilusão, só queria encontrar a
resposta que esperava para finalmente deixar o nosso planeta. A partir da
perspectiva de dois indivíduos unidos pela solidão, pela melancolia e pela
carência, Helpert é astuto ao explorar a tênue linha entre a razão e a emoção,
ao colocá-los ora em rota de conflito, ora de fusão. O que, diga-se de passagem,
evita que a relação entre eles se torne apenas mais um romance genérico. Outro
ponto que agrada, e muito, é a maneira com que o diretor explora o viés
insinuante do texto. Mesmo nos momentos mais lentos, Helpert consegue alimentar
certos mistérios, propor algumas inspiradas alegorias, nos colocar em dúvidas
sobre as reais motivações dos personagens. Sem querer revelar muito, o roteiro
é particularmente esperto ao explorar o misto de frieza e inocência da jovem
cientista, uma “rainha virgem” (numa alusão a colmeia que ela cultivava com
tanto afinco) que não havia experimentado a vida pré-apocalipse. O que só
reforça as nossas dúvidas sobre as reais intenções da protagonista.
Uma pena que, para isso, IO tenha que sacrificar tanto das suas
virtudes. A começar pela queda de ritmo da história. À medida que o segundo ato
ganha forma, Jonathan Helpert pisa no freio com imprudência, se perdendo em
meio às suas próprias pretensões ao, por alguns bons minutos, não saber bem
para onde ir. O objetivo dos dois personagens é repentinamente colocado em
segundo plano, dando espaço à diálogos irregulares e soluções que parecem
colocar o arco central em suspensão. Além disso, na tentativa de extrair o
máximo do choque de experiências entre Sam e Micah, o realizador investe em
sequências que tentam soar mais inteligentes do que são, culminando num diálogo
sentimentalista sobre Platão e a importância de busca pela cara metade. Confesso
que, aqui, o filme quase me perdeu, principalmente pela forçada de barra do
script em tentar explorar a complexa dicotomia proposta de 'plot' de maneira desastradamente
expositiva. Quase didática. Um erro que, verdade seja dita, se repete no
competente clímax, quando toda a criativa metáfora renascentista sugerida pela
película perde força no momento em que o roteiro se vê obrigado a explicar para
o público o sentido por trás de uma obra de arte. Uma perda de confiança na
inteligência do espectador que não só contrasta com a ousadia narrativa da obra,
como também com o aspecto mais virtuoso do longa. Incluindo a sólida construção
dos dois intensos protagonistas, a expressiva fotografia externa em tons por
vezes saturados de André Chemetoff e a inteligente crítica ambiental escondida
numa bem resolvida parábola evolucionista.
Guiado pelas intensas performances de Margaret Qualley e Anthony Mackie, contidos ao entender o real grau de conexão entre os seus dois personagens, IO é uma obra com momentos ora provocantes, ora cansativos que, mesmo nos seus trechos menos inspirados, nunca deixa de instigar. Um thriller pós-apocalíptico de sobrevivência que foge do lugar comum ao valorizar o aspecto científico em detrimento do fator humano. Com o subir dos créditos, porém, fica a sensação de potencial inexplorado, um sentimento que, embora não apague os inúmeros predicados da obra, me deixou com a certeza que a jornada de Sam e Micah tinha muito mais a oferecer.
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