Um filme de horror pode ser pensado para ser "gostável''? Eis uma pergunta difícil de ser respondida. À rigor, o gênero nasceu da provocação. Do choque criado a partir da "profanação" de signos estimados. O terror, como nenhum outro gênero, tem o poder de desafiar o público a partir de reações instintivas. O medo enquanto instrumento de reflexão. "O Mistério de Candyman", o original de 1993, entendeu isso como poucos. O fantástico hit noventista dirigido por Bernard Rose ressignificou a banalização da violência dos 'slashers movies' na tentativa de expor as sequelas do racismo na rotina do afro-americano.
O mal, aqui, ganhou um uma conotação reativa. Candyman era o ódio em estado puro. Candyman era o espírito de uma comunidade devastada pelo vício, pela exploração e pela violência. O vilão era um sintoma. Uma lenda criada para afugentar. Uma defesa do inconsciente. Um conceito brilhante aplicado num thriller de horror forte, pesado e provocante. O tipo de ousadia que falta a sua continuação/remake, o confuso "A Lenda de Candyman''. Existe uma série de ótimas ideias no bagunçado longa da diretora Nia da Costa. A maioria delas, contudo, se perde numa obra determinada a reescrever o passado, mas incapaz de se emancipar dele.
O problema, na verdade, não está na maneira (criativa, por sinal) com que o roteiro assinado pela própria diretora, ao lado de Jordan Peele e Win Rosenfeld, se apropria da mitologia original determinado a enxergar os fatos sob uma nova perspectiva. O protagonismo branco ficou no passado. O choque não está associado à miséria exposta a partir do olhar do 'white savior' (um conceito brilhantemente subvertido no original).
Em "A Lenda de Candyman'', a cineasta desafia a estética gótica "suja" do original ao defender o empoderamento através da imagem. Esqueça a marginalização da dor do afro-americano. Nia da Costa enxerga as conquistas da comunidade a partir dos seus protagonistas, o artista plástico Anthony (Yahya Abdul-Mateen II) e a curadora de arte Brianna (Teyonah Parris). Eles são o rosto de uma América progressista. Eles são o presente.
Uma realidade que o longa se orgulha em expor. A expressiva direção de arte assume a linguagem modernista estabelecida pelo plot ao imprimir o sucesso do casal em tela. A realizadora usa a arte para questionar aqueles que visavam lucrar com o sofrimento negro. Uma lógica que, durante muito tempo, vigorou em Hollywood. O que ajufa a explicar as escolhas do longa. "A Lenda de Candyman" quer defender o novo. "A Lenda de Candyman" exalta o empoderamento num meio ainda racista. "A Lenda de Candyman" se esforça para dialogar com uma agenda racial importante. Uma abordagem representativa "gostável" que poderia ter sido o diferencial da obra.
Para justificar essa visão de continuação, no entanto, Nia da Costa sacrifica o único elemento do longa original que não poderia ser descaracterizado: a realidade. Na ânsia de expandir a mitologia em torno da lenda (reescrita em transições lúdicas), a realizadora perde o foco numa tentativa superficial de retratar um século de violência contra os afro-americanos. Os condomínios habitacionais de outrora viraram prédios modernos num bairro gentrificado. Do alto destes condomínios de luxo, contudo, "A Lenda de Candyman" não consegue ouvir o grito de revolta de muitos.
O que começa de maneira interessante, com um estudo sobre a obsessão de um artista sem raízes disposto a tudo para emplacar um sucesso, logo descamba para uma série de soluções rocambolescas envolvendo versões alternativas de Candyman e uma visão literal sobre os obstáculos impostos por um meio racista. Um abordagem que não difere em nada da proposta pelo original.
Anthony, ao contrário da pesquisadora Helen (Virgínia Madsen), é um personagem oco. O roteiro, para proteger o irrelevante plot twist, impede que conheçamos o passado do protagonista. A obsessão dele pela figura de Candyman diz mais sobre a inconsequência do artista vaidoso, do que sobre o tormento de uma comunidade. Uma escolha conveniente. Sempre que se vê obrigada a romper com a estética 'clean' proposta, Nia da Costa apela para flashbacks expositivos que entram em contradição com o tom empoderador defendido. A dor da comunidade é explorada apenas como um alicerce narrativo.
O que ecoa, até mesmo, no impactante clímax, um desfecho provocador que se revela vazio devido a opção do longa em não trazer a investigação policial envolvendo uma série de misteriosos assassinatos para o centro da equação. "A Lenda de Candyman" é, em suma, uma crônica social falha. O pior, no entanto, está na maneira relapsa com que a diretora explora o cinema de gênero. O horror surge quase sempre em segundo plano. Como se Nia da Costa, de alguma forma, tentasse proteger a figura de Candyman.
A sequência do ataque no banheiro de uma escola, em especial, é de uma omissão que constrange. Esqueça a tensão do original. Esqueça (ou não?) o Candyman imponente e agressivo de Tony Todd. O que vemos aqui é um vilão diet que não gera medo, nem repulsa, nem ameaça. Apenas pena. Um sentimento que seria válido se o roteiro mergulhasse, de fato, na angústia de uma comunidade através dele. O que nós assistimos, porém, é uma construção narrativa focada na deterioração de um artista negro consumido por uma realidade que o texto reluta em abordar.
É através da imagem, mais uma vez, que Nia da Costa melhor captura a corrosão do protagonista num contexto racista. A cineasta faz um brilhante uso do 'body horror' para traduzir a degradação de Anthony na busca por respostas que o conduzam ao seu passado. Impulsionado pelo fantástico trabalho da equipe de maquiagem (a decrepitude estabelecida pelo longa causa um efeito genuinamente asqueroso), Yahya Abdul-Mateen II se esforça para imprimir em tela o peso que falta ao roteiro, mas não consegue se sobressair diante de uma obra com pretensões tão erráticas.
Com um senso de terror implícito e uma estrutura narrativa presa ao longa original, "A Lenda de Candyman" caminha em círculos com ambições modernizantes para, só no fim, entender que a dor causadora do horror estava ligada ao passado. Não a obsessão de um artista desconectado da realidade, tampouco a uma (frustrante) mitologia fantasiosa, mas ao ódio puro personificado na vítima da brutalidade gerada pela injustiça racial.
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