Desde que o impactante O Sexto
Sentido (1999) “explodiu a cabeça” dos espectadores ao redor do mundo com a sua
soberba reviravolta, o gênero do suspense paranormal se sentiu tentado a
replicar uma fórmula buscando um resultado semelhante. E, verdade seja dita,
muitos ótimos filmes sucederam o clássico moderno de M. Night Shyamalan. O
enervante Ecos do Além (1999), por exemplo, foi o primeiro a surfar esta onda,
ganhando um alcance bem maior ao ser lançado poucos meses depois do ‘hit’
estrelado por Bruce Willis. Nos anos seguintes vieram obras do porte de O Dom
da Premonição (2000), Os Outros (2001), A Espinha do Diabo (2001), A Vila
(2004) e O Orfanato (2007). Uma “safra” de trabalhos elegantes que presavam pela
construção do clima de mistério em detrimento dos sustos fáceis. Além
Shyamalan, nomes como o do mexicano Guillermo Del Toro (O Labirinto do Fauno),
do espanhol J.A Bayona (O Impossível) e do chileno Alejandro Amenábar (Mar
Adentro) emergiram desta corrente, o que ajuda a explicar o nível de qualidade destas
produções.
Como geralmente acontece em
Hollywood, porém, tudo o que é bom logo é saturado pelos interesses
mercadológicos. O nível dos filmes de fantasma voltou a cair exponencialmente com
o ‘boom’ de outros nichos do segmento, em especial do ‘found foutage’ e do
lucrativo modelo Blumhouse. Não demorou muito para este tipo de produção (mais
moderada e intimista) perder a vez. De tempos em tempos, porém, alguns
lançamentos surgem para saciar o nosso “apetite”. De longe o melhor título do
subgênero desde A Ilha do Medo (2010), O Segredo de Marrowbone impressiona pela
sua capacidade de flertar com elementos do cinema de horror moderno sem
sacrificar o clima de suspense atmosférico das produções citadas acima. Lançado
bizarramente direto via streaming por aqui, o que só atesta tudo o que escrevi
acima, o longa escrito e dirigido pelo espanhol Sergio G. Sanchez causa um
inesperado impacto ao criar uma ameaça extremamente reconhecível aos olhos do
público. O fantasma do abandono, da brutalidade, da solidão.
Inteligente ao arquitetar a
realística metáfora familiar proposta inicialmente pelo roteiro, O Segredo de
Marrowbone faz jus ao título ao saber alimentar como poucos os seus mistérios.
Apesar das generosas exposições narrativas em parte do segundo ato, Sergio G.
Sanchez testa as expectativas do público ao preencher a trama com pequenas
perguntas que sabiamente ficam sem respostas num primeiro momento. Curiosamente,
porém, o ‘plot’ em si é simples e objetivo. Após uma repentina fuga da
Inglaterra para a América, a família Marrowbone decide tentar colocar uma pedra
no passado. Quando a matriarca morre deixando os seus quatro filhos menores de
idade sozinhos, o mais velho Jake (George McKay) se vê obrigado a isolar os
seus irmãos na tentativa de impedir que a cidade descobrisse a situação deles e
alertasse às autoridades. Com base nesta instigante premissa, o realizador
espanhol é astuto ao gradativamente introduzir as peculiaridades por trás da
rotina deles. Sob uma perspectiva intimista e por vezes sorrateira, ele é cuidadoso
ao estabelecer a dinâmica dentro da casa, a posição de cada um, os seus
respectivos medos, os perigos que o cercavam. Logo algumas perguntas começam a
brotar na nossas cabeças. Por que eles não podem olhar para o espelho¿ Por que
existe uma porta lacrada com pedras¿ Por que o fantasma que os ameaça só parece
amedrontar o pequeno Sam (Matthew
Stagg)¿ Fazendo um precioso uso do poder da insinuação, Sanchez esbanja
perspicácia ao permitir que o espectador participe da história, que tente
encaixar as peças, conjecturar sobre os fatos não mostrados. Um artifício,
diga-se de passagem, potencializado por hiato temporal engenhosamente
construído pelo roteiro. Algo de muito importante aconteceu, mas nós não
sabemos o que.
Na verdade, o espectador mais
experimentado no gênero não deve demorar muito para capturar a raiz dos segredos
em questão. Por mais que Sanchez mostre categoria ao extrair o máximo do
crescente clima de tensão dentro da assombrosa mansão, uma aura soturna
brilhantemente construída por ele a partir de enquadramentos refinados, do
expressivo desenho de som, do precioso trabalho da equipe de direção de arte e
do seu imersivo ‘mise en scene’, o ‘twist’ inicial deve ficar claro porque não
chega a ser tão distante da realidade previamente estabelecida. O que, de fato,
não significa um demérito para o roteiro, já que, além de alimentar um esperto
clima de desconfiança sobre os mistérios em si, o realizador em nenhum momento
se prende única e exclusivamente ao fator surpresa. Ao fugir dos sustos fáceis
e dos protocolares ‘jump scares’, o diretor espanhol consegue ir além do
fantasma em si, refletindo sobre os medos dos personagens através da relação
deles com esta ruidosa criatura. É interessante ver como o elemento paranormal,
aqui, esconde os traumas familiares dos irmãos, as dolorosas cicatrizes de uma
infância cruel e devastadora. Embora o fantasma assombre nos momentos certos,
Sanchez é maduro ao capturar o horror da reação dos personagens, da gradativa
sensação de desconforto e disfuncionalidade, tornando tudo o mais denso
possível.
Em alguns momentos, inclusive, O
Segredo de Marrowbone não se furta em abraçar o drama com convicção, entregando
sequências carregadas de emoção e de muita intimidade. Sem querer revelar
muito, a cena do pacto entre os irmãos é de uma beleza desconcertante. Um
predicado valorizado pelas fortes performances do jovem, talentoso e entrosado elenco,
que, de maneira intensa, imprimem em tela o misto de precocidade (George McKay,
magnífico ao realçar a fragilidade por trás da resiliência de Jake), ternura
(Mathew Stagg, pura fofura), coragem (Charlie Heaton, explosivo ao surgir como
um contraponto ao protagonista) e culpa (Mia Goth, introspectiva ao traduzir o
silencioso grito de dor da sua Jane) que os seus personagens exigiam. Além
disso, é legal ver também a delicadeza de Sergio Sanchez ao solidificar o elo
entre Jake e o seu interesse amoroso, a independente Allie (Anna Taylor-Joy,
peculiar como de costume), tornando a relação dos dois um sopro de normalidade
dentro da rotina do protetor primogênito.
Quando tudo parecia rumar para um
desfecho digamos nem tão inovador assim, o que, pelas virtudes expostas acima,
passaria longe de ser decepcionante, O Segredo de Marrowbone faz jus aos títulos
citados no primeiro parágrafo ao usar a possível previsibilidade do argumento a
seu favor, ao “distrair” as nossas atenções na construção de um ‘plot twist’
difícil de ser decifrado. Esse realmente me pegou de surpresa! Por mais que, na
transição para o clímax, o realizador peque (mais uma vez) pela falta de
confiança no espectador ao surgir com pelo menos uma destoante sequência expositiva,
a solução encontrada por ele para manter o clima de perigo iminente intacto até
o fim é extremamente coerente, uma sacada simples com consequências complexas que
ajuda a unir todas as peças deste intrigante quebra-cabeça. E olha tudo se
encaixa de maneira praticamente impecável, comprovando a capacidade de Sanchez
tanto em explorar os simbolismos em torno do elemento fantasmagórico, quanto em
fincar os dois pés na realidade ao revelar o impacto da brutalidade no destino
dos seus personagens. Somado a isso, na hora H, o roteiro esbanja dinamismo ao
voltar à lacuna temporal proposta lá no primeiro ato, costurando passado e
presente com esmero e pulso narrativo.
Impactante enquanto filme de
horror, pesado enquanto um drama familiar, instigante enquanto suspense
fantasmagórico, O Segredo de Marrowbone surpreende ao enxergar
além dos seus ‘plot twists’. Impulsionado pela elegante trilha sonora
incidental de Fernando Velázquez (A Colina Escarlate, Sete Minutos Depois da
Meia-Noite) e pela texturizada fotografia fria de época de Xavi Giménez (A
Mulher de Preto), Sérgio G. Sanchez entrega uma obra enervante, inteligente e
atmosférica. Um filme esteticamente virtuoso capaz de incomodar ao mostrar que
a realidade pode ser tão (ou talvez bem mais) assustadora do que uma atividade
sobrenatural.
3 comentários:
Parabéns, que texto chato
Incrível a sua resenha eu amei
Explicou, explicou… e não agregou em nada.
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