Logo na fantástica cena de
abertura, o prodígio Damien Chazelle (Whiplash, La La Land) mostra que Primeiro
Homem não será mais um filme reverência sobre os incríveis feitos
norte-americanos durante a corrida espacial nos anos 1960. Nela, sentimos na
pele a angústia de Neil Armstrong, um verdadeiro “passageiro da agonia” numa
aeronave rudimentar durante um mero voo civil rumo à estratosfera. Uma
sequência tensa e imersiva que diz muito sobre o que veremos a seguir. Sem a
intenção de glamourizar os intrépidos feitos do primeiro homem a pousar na lua,
Chazelle mostra a sua impressionante maturidade artística ao desvendar a figura
de Armstrong, investindo numa abordagem nua e crua ao tentar entender o que
movia esta complexa e introspectiva figura. O resultado é um retrato quase
documental, uma obra íntima e densa que, embora esbanje virtuosismo técnico ao
traduzir a dura vida de um astronauta em verdadeiras caixas de metal voadoras,
se encanta verdadeiramente pelo (vulnerável) homem por dentro do uniforme, o rígido
pai, o errático marido. Um tipo pragmático e obstinado disposto a fazer sacrifícios
em prol dos seus objetivos.
Esqueça, portanto, o arquétipo
‘cool’ que Hollywood ajudou a consagrar quando o assunto são os astronautas da
ficção. Fiel aos fatos, o argumento assinado por Josh Singer (do igualmente
excelente The Post: Guerra Secreta) é positivamente frio ao desvendar o
racionalismo de Neil Armstrong. Um homem regrado e nada midiático que só queria
cumprir a sua missão da forma mais segura possível. Sem medo de se prender
demais a face antipática do protagonista, Damien Chazelle é cirúrgico ao
colocar o drama familiar\pessoal do seu protagonista em primeiro lugar,
buscando compreender a chama que o movia a partir dos seus conflitos, das suas
perdas e do seu comportamento distante. Com uma abordagem intimista,
potencializada pela austera fotografia envelhecida\granulada em tons pastéis de
Linus Sandgren (La La Land), o realizador torna tudo o mais verdadeiro possível
ao invadir o seio familiar de Neil Armstrong (Ryan Gosling) e mostrar o impacto
da sua profissão na rotina daqueles que o cercavam. Com a sua câmera em muitos
momentos na mão e os seus invasivos planos fechados, Chazelle contorna a
personalidade lacônica do biografado ao extrair à força as discretas
manifestações de emoção de Armstrong, ao expor pouco a pouco a face mais frágil
por trás da casca dura e impávida que ele nitidamente se esforçava para manter.
Ao longo do contextualizador primeiro ato, o longa é inteligente ao se
concentrar basicamente na figura do protagonista. Ao mostrar como uma dolorosa
perda ajudou a guia-lo rumo ao feito que mudaria a sua vida. Os conflitos de
Armstrong são reais, as suas reações totalmente compreensíveis, a sua
resiliência esconde o drama de um homem que decidiu não externar a sua dor.
Cada perda durante a sua jornada é sentida, o que só ajuda a compor este
complexo personagem. Nuances profundas capturadas com comedimento por Ryan
Gosling, que, numa performance implosiva, esbanja sutileza ao interiorizar o
misto de tristeza, medo, frustração e gana que o movia.
O Primeiro Homem atinge o seu
ápice, entretanto, quando Damien Chazelle decide se debruçar sobre a dinâmica
familiar do biografado. Enquanto o astronauta Neil Armstrong quase não deixava
transparecer as suas emoções, o que fica bem claro na intensa cena de um
trágico telefonema, o pai\marido Neil Armstrong era mais suscetível aos seus
sentimentos. É aqui, na verdade, que o jovem realizador escancara a face mais
humana do protagonista, principalmente quando o assunto é a sua estreita relação
com a esposa, a igualmente resiliente Janet (Claire Foy). Obrigada a conviver
com a ausência, o peso nos ombros e a sensação de perigo iminente, a forte
personagem cresce assustadoramente ao longo da película, se revelando a única
capaz de tirar Armstrong da sua claustrofóbica casca. Indo (bem) além do
arquétipo da figura materna multitarefas e compreensiva, Foy explode em cena
com energia e sutileza, oferecendo assim uma bem-vinda visão sobre o outro lado
desta equação. Assim como Armstrong, Janet também tinha muito a perder, uma
desconfortável sensação de desamparo que culmina em alguns dos melhores
momentos do longa. Como não citar, por exemplo, a desconcertante sequência em
que o pai Armstrong é desafiado a explicar para os seus filhos que poderia não
retornar para casa após a sua missão, ou então a discreta e emotiva cena final,
dois momentos genuinamente íntimos que só ajudam a reforçar o turbilhão de
emoções que cercava os personagens. Outro ponto que agrada, e muito, é a
maneira com que o roteiro explora a figura da pequena Karen na identidade do
astronauta. Por mais que, claramente, Chazelle encontre aqui uma brecha para
interferir mais dramaticamente na jornada de Armstrong, ele o faz com
indescritível delicadeza, permitindo que o público compreenda como algumas
lacunas pessoais são difíceis de serem preenchidas.
Diante de tantos predicados
narrativos, na verdade, confesso que já estaria por si só satisfeito se
Primeiro Homem seguisse essa abordagem meio ‘indie’, meio documental sobre a
rotina de Neil Armstrong longe do uniforme. Damien Chazelle, porém, não perde a
oportunidade de desfilar o seu virtuosismo técnico ao capturar a dura rotina de
um astronauta durante a preparação para um desafio deste porte. O resultado é
uma experiência sufocante. Esqueça o caos plasticamente imagético de títulos como
Gravidade e Perdido em Marte. O jovem realizador não se contenta em mostrar o
quão expostos estavam os postulantes durante as suas inúmeras missões. Ou então
a beleza impactante do cenário espacial\lunar. Com enquadramentos fechadíssimos,
um primoroso uso dos planos subjetivos, um assustador design de som e
vertiginosos movimentos de câmera, Chazelle se esforça para nos colocar dentro
das (minuciosamente recriadas) naves, invadindo a perspectiva de Neil Armstrong
em sequências difíceis de se traduzir em palavras. Numa solução ousada,
inclusive, o jovem diretor mostra originalidade ao filmar os turbulentos voos
de dentro para fora. O espaço surge em tela quase sempre apenas na janela dos
tripulantes. Uma redução no escopo da película que se torna fundamental para a
valorização do aspecto mais claustrofóbico das missões. Quando necessário,
porém, Chazelle escancara a nossa pequenez perante a vastidão do universo com
enorme requinte estético, nos brindando com uma preciosa recriação do primeiro
pouso do homem na lua. Aqui, e só aqui, o realizador se permite reverenciar os
feitos de Neil Armstrong e Buzz Aldrin. Até porque, antes disso, ele não poupa
ninguém ao descortinar os bastidores da corrida espacial norte-americana na
década de 1960. Chazelle coloca o dedo na ferida ao expor as críticas, o
despreparo, a falta de convicção e as devastadoras sequelas das inúmeras
tentativas (e erros) da NASA numa época em que simuladores sequer sonhavam em
existir. Vide a ultra realística sequência da queda de Neil Armstrong durante
um simples treinamento, um daqueles momentos inacreditáveis que só os grandes
conseguem tirar do papel.
Embora peque pela falta de
acabamento de alguns dos seus arcos, a simpática personagem vivida por Olivia
Hamilton é inadvertidamente esquecida na metade final do longa, Primeiro Homem
vai muito além dos incríveis feitos de Neil Armstrong ao se encantar pela face
mais comum e insegura do biografado. Com um sólido elenco de apoio e um
incrível trabalho de reconstrução da tecnologia da época, Damien Chazelle exibe
a sua autoral assinatura ao realçar a disfuncional relação de uma família
separada por uma lacuna de proporções (literalmente) espaciais, aterrissando na
intimidade de um homem enigmático ao tentar entender as reais motivações por
trás do seu histórico pequeno grande passo.
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