Sou fã de fábulas
cinematográficas. Um subgênero fértil que, inclusive, já foi tema de um Top 10aqui no Cinemaniac. Gosto, em especial, da capacidade de alguns realizadores em
utilizar a fantasia para tocar em questões densas e inquestionavelmente
realísticas. Em tratar a magia como uma espécie de refúgio para um mundo que
assusta, que acua, que entristece. Como não recordar, por exemplo, de títulos
como o revigorante A História sem Fim (1984), o cativante Babe: Um Porquinho
Atrapalhado (1995), o visceral O Labirinto do Fauno (2006), o emocionante Ponte
Para Terabitia (2007), o rebelde Onde Vivem Os Monstros (2009), o crítico Deus
Branco (2015) e o complexo Sete Minutos Depois da Meia Noite (2016). Obras
inesquecíveis que, por trás do elemento fantástico, escondem comentários
pertinentes sobre alguns dilemas cada vez mais presentes no nosso dia a dia. Uma
pena que, nos últimos anos, esse tipo de filme tenha caído tão em desuso. Ou
então ficado “preso” ao criativo universo da animação. É triste ver o completo
desdém para produções como o intenso Caçadora de Gigantes. Lançado diretamente
via ‘streaming’ no Brasil, algo que tem se tornado recorrente dentro do
segmento, o instigante longa dirigido por Anders Walters impacta ao tentar
entender a mente de uma inocente adolescente às avessas com os gigantescos
obstáculos da vida real. Com um crescente clima de mistério e uma abordagem
pouco condescendente, o realizador é cuidadoso ao escancarar os prós e os
contras em torno da fabulesca realidade criada pela imaginativa protagonista,
tocando em feridas bem realísticas enquanto desbrava a jornada de uma guerreira
disposta a tudo para manter a salvo aqueles que a amam.
Adaptação da graphic novel homônima
escrita por Joe Kelly e J.M Ken Nimura, Caçadora de Gigantes provoca um misto
de sensações ao não se encantar pelo comportamento da sua protagonista. Embora
a verdade dela nunca seja questionada, Anders Walters é enfático ao mostrar que
estamos diante de alguém com verdadeiros problemas. Com a intenção de manter os
segredos em torno dos motivos por trás de um comportamento tão excêntrico, o
diretor esbanja sensibilidade ao primeiro nos situar quanto a rotina de Bárbara
(Madison Wolfe). Uma jovem aparentemente feliz e com um propósito de vida:
matar os gigantes que, segundo ela, ameaçariam a vida na sua pequena cidade.
Sob os cuidados da sua atarefada irmã, a pressionada Karen (Imogen Poots), a
adolescente vivia quase que sempre inserida neste mundo de fantasia, preparando
armadilhas e porções a espera do dia em que teria que se defender de tamanha
ameaça. Uma rotina solitária e peculiar que ganha um novo rumo quando ela
conhece a curiosa Sophia (Sydney Wade),
uma garota da sua mesma faixa etária que chega na vizinhança de mudança da
Inglaterra. Igualmente só, a adolescente encontra em Bárbara a chance de
construir uma nova amizade. Não demora muito, porém, para ela perceber que não
estava diante de uma menina comum, principalmente quando ela descobre os segredos
escondidos neste mundo de criaturas mitológicas e gigantes.
Com um olhar humano sobre a desordem que acometia Barbara, Caçadora de
Gigantes comove ao revelar as sequelas impostas por esta tentativa de fuga da
realidade. Mesmo sem nunca sacrificar o viés fabulesco, os gigantes são
imponentes e por vezes até assustadores, Anders Walter acerta ao focar a maior
parte do tempo no mundo em que vivemos. Se por um lado o longa parece se
orgulhar da coragem da protagonista e da riqueza do universo em que ela parecia
tão inserida, por outro não titubeia em expor as consequências de tal
comportamento, o seu isolamento, a sua agressividade e principalmente o seu
distanciamento da realidade. Ela é pedante, antipática, antissocial. Não é uma
personagem de fácil aceitação. Além disso, ao contrário dos filmes citados no
primeiro parágrafo, a fantasia, aqui, não surge tanto quanto um refúgio. Um
lugar de conforto. Mas como uma defesa. Existe sofrimento, angústia, solidão, algo
que, mesmo antes do argumento invadir a psique da personagem, já soa claro.
Bárbara parece se preparar para algo, mas não sabe muito bem o quê.
Impecável ao estabelecer a sensação de disfuncionalidade em torno da
rotina protagonista, Anders Walter é igualmente habilidoso ao gradativamente
tocar na raiz dos seus problemas pessoais. Fazendo um inteligente uso de tipos
como a gentil Sophia e a preocupada Mrs. Mollé (Zoe Saldana), o roteiro pouco a
pouco consegue invadir a psique de Bárbara. A amizade entre as jovens, por
exemplo, surge como um sopro de normalidade na realidade da protagonista, algo
que, espontaneamente, parece obriga-la a se afastar do seu mundinho. O mesmo,
aliás, podemos dizer da instável relação entre a adolescente e a psicóloga. Sem
querer revelar muito, é a partir desta confrontadora dinâmica que podemos
enxergar um vislumbre dos conflitos de Bárbara, da sua dor reprimida canalizada
no universo criado por ela. O longa acerta ao não reduzir tudo aos frutos de
uma mente criativa. Por trás do seu inocente modo de encarar os problemas
existe sofrimento. Alguém que precisa de atenção, de tratamento. Os gigantes,
então, surgem como um símbolo de um obstáculo muito maior. Tão ameaçador aos
olhos de uma criança. À medida que a trama avança, Walter é astuto ao sugerir
pistas da verdade escondida neste mundo mitológico. Ao entender a sua origem.
Ao explorar o significado por trás disso tudo. Nas entrelinhas, é legal ver o
esmero do roteiro em tocar em temas delicados como a depressão, a morte, a
perda da inocência e o amadurecimento precoce. Temas complexos e muito bem
justificados pelo consistente texto que só reforçam a carga dramática do
comovente último ato.
O coração de Caçadora de Gigantes, entretanto, reside na intensa
performance de Madison Wolfe. Consciente da proposta realística do longa, ela
interioriza o turbilhão de emoções da sua Bárbara com naturalidade, criando um
tipo ora corajoso, alegre e combativo, ora agressivo, frágil e desequilibrado.
Embora o filme não foque em questões clínicas, Wolfe não vacila em criar uma
personagem com nítidos problemas emocionais, uma menina que encontrou no mundo
da imaginação uma pueril forma de lutar contra algo tão inevitável. O mesmo,
aliás, podemos dizer da singela performance de Sidney Wade. Mais do que nos
conduzir pela mitologia criada por Bárbara, a sua Sophie enche a tela de realismo
ao traduzir o estranhamento para com os atos da protagonista. Por mais que o
gradativo elo entre elas seja nítido, Wade consegue expor no seu olhar o misto
de medo, compaixão e espanto da sua personagem. Algo que só ajuda a potencializar
o nosso incômodo com a imersão da “caçadora” neste mundo fantasioso. Num elenco
majoritariamente feminino, outro dos bons predicados da obra, precisamos
destacar também a contida performance de Zoe Saldana. Na pele da zelosa
psicóloga, ela traz uma madura perspectiva adulta sobre os fatos, conferindo
peso a sua personagem mesmo com um menor tempo de tela. É através delas, na
verdade, que enxergamos a face mais arredia de Bárbara, mais perigosa, uma
sensação que se torna mais nítida nas feições de preocupação expressas por
Saldana.
Embora subaproveite alguns laços na tentativa de construir os mistérios
em torno da raiz dos conflitos de Bárbara, a personagem de Imogen Poots, em
especial, merecia maior espaço, Caçadora de Gigantes usa os devaneios de uma
mente infantil como a porta de entrada para um estudo de personagem complexo e
intimista. Um retrato inteligente sobre os lúdicos mecanismos de defesa de uma
adolescente na luta contra uma das poucas certezas da vida. Um gigante nem
sempre cruel, mas indiscutivelmente implacável.
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