Representante japonês na corrida
pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2019, Assunto de Família é um filme
de opinião forte. E sobre um tema extremamente delicado. Se em Pais e Filhos
(2013) Hirokazu Koreeda já havia colocado em cheque a importância dos laços
consanguíneos ao narrar o drama de duas famílias vítimas de uma troca de bebês
na maternidade, em Shoplifters (no original) o sensível realizador nipônico
toca em feridas bem mais profundas ao se insurgir de vez contra a pretensa
funcionalidade de uma família biológica. Sob uma perspectiva íntima e
fascinantemente naturalista, Koreeda rompe com uma visão conservadora sobre o
que deve definir um núcleo familiar ao acompanhar as desventuras de um casal
humilde disposto a abrigar uma garotinha vítima de maus tratos. Com personagens
falhos e uma abordagem humana sobre o assunto, o realizador causa
um misto de encantamento e desconforto ao abraçar a disfuncionalidade presente
na trama, ao tratar o afeto como a principal resposta para a pergunta feita
acima.
Vivemos tempos de extrema
insensibilidade humana. Seja na regrada sociedade japonesa, sejam nos caóticos
centros urbanos ocidentais, o “eu” cada vez mais se sobrepõe ao “nós”. O drama alheio
cada vez mais importa menos. Uma crise de empatia agravada pelas implacáveis
sequelas da desigualdade social. A ajuda, porém, pode vir de onde menos
esperamos. Hirokazu Koreeda sabe muito bem disso. Seus filmes não estão
interessados em exaltar a pobreza como uma virtude. Longe disso. Em Assunto de
Família os protagonistas, o casal Osamu (Lily Franky) e Nobuyo (Sakura Andô), além
de conviver com as incertezas de um passado nebuloso, completam a sua renda com pequenos furtos
e desvios. Eles fazem o que precisam para sobreviver, para levar uma vida mais
digna. O que inclui usar as crianças como parte dos inofensivos roubos. Um
desvio que, aos olhos do ocidente, pode até soar pequeno, mas, sob a rígida
perspectiva oriental, costuma dizer muito sobre o caráter dos autores. Uma visão
insensível veementemente contestada pelo longa. Na verdade, a pobreza surge
como um agente catalisador da história. Ao situar a trama num ambiente humilde
e frequentemente vilanizado por muitos, Koreeda só reforça o soco no estômago
proposto pela trama. O biológico, aqui, pouco importa. O material então nem se
fala.
Diante do calor humano, da
conexão quase que obrigatória numa casa tão pequena, da constante troca de
palavras e carinho, não existe literalmente espaço para o vazio. Para a
solidão. Osama e Nobuyo podem ter pouco a oferecer, mas o que possuem entregam
ao máximo. Uma troca de experiências potencializada pela comovente abordagem
naturalista proposta por Hirokazu Koreeda. Sem grandes firulas
estéticas\narrativas, ele se encanta pela verdade dos seus falíveis
personagens, pela força dos laços construídos, pelo esforço de cada um deles em
tratar a pequena e acuada Yuri (Miyu Sasaki) como uma nova peça desta
engrenagem. Em dar a ela aquilo que aqueles que a geraram não fizeram a questão
de oferecer. Ao longa da primeira metade do longa, em especial, o realizador
nipônico se preocupa muito mais com o desenvolvimento do elo entre os
personagens do que propriamente com a construção narrativa, tornando tudo muito
real e sem filtros aos olhos do público. E isso, verdade seja dita, sem nunca
deixar de expor o melhor e o pior dos seus personagens. O que, graças a visão
compreensiva do realizador japonês, só ajuda a reforçar a crítica proposta pela
película.
Curiosamente, entretanto, apesar
da óbvia linguagem naturalista do projeto, é interessante ver a sagacidade de
Hirokazu Koreeda em não atenuar a complexidade do tema proposto. Sem a intenção
de dar respostas fáceis, o argumento assinado pelo próprio diretor é
inteligente ao gradativamente sugerir pistas sobre a real conexão entre os
membros desta disfuncional família. O sentimento entre eles, de fato, nunca é
questionado. Mas os motivos que os uniram não poderiam deixar de ser. Aos
poucos algumas perguntas começam a vir à tona. Por que o pequeno e carinhoso
Shoto (Jye Kairi) insiste em não chamar Osamu de pai? Por que a irônica vovó
Hatsue (Kirin Kiki) recebe escondida uma quantia em dinheiro de uma outra
família? Por que eles temem tanto a presença do Estado? A partir destas
instigantes questões, Koreeda esbanja sensibilidade ao expor a realidade dos
fatos, ao enxergar além da troca de afeto\proteção. Existe perigo por trás das
boas intenções. Um passo em falso e tudo pode ruir. Nas entrelinhas, sob uma
perspectiva silenciosamente infantil, o diretor é cuidadoso ao estabelecer a
vulnerável posição das crianças. A partir da singela relação entre Shoto e
Yuri, em especial, Koreeda discorre sobre o passado delas, transitando por
temas como abandono infantil, abuso paterno e evasão escolar com enorme
propriedade. E isso, em muitos casos, sugerindo mais do que mostrando, o que,
dada a universalidade do delicado assunto em questão, faz todo o sentido.
A alma de Assunto de Família,
porém, está invariavelmente na crítica proposta por Hirokazu Koreeda. Na
transição para o último ato, o longa é corajoso ao mudar drasticamente o tom da
obra, ao concretizar alguns dos maiores medos daquela família. Impecável ao estabelecer
o sincero elo afetivo entre os personagens, o diretor japonês é igualmente
cuidadoso ao questionar a validade da lógica daqueles que tratam o vínculo
biológico como a pedra fundamental para a construção de um núcleo familiar. Com uma
franqueza desoladora, Koreeda se insurge contra o conservadorismo da sociedade
nipônica ao revelar a distorcida visão estatal sobre o que eles viveram, sobre
a verdade dos protagonistas, expondo assim o impacto da insensibilidade coletiva sob
uma desconcertante perspectiva governamental. Uma crítica seca e implacável
que, ainda assim, em nenhum momento reduz a beleza do que foi mostrado
previamente. Da relação construída num ambiente de desamparo, desigual e um
tanto quanto injusto. Recheado de sequências primorosas, o abraço entre “mãe” e
“filha” desponta como uma das cenas mais poderosas da história recente do
cinema, Assunto de Família surge então como um retrato daquilo que deveria ser
valorizado, dos sentimentos que, independentemente de laços consanguíneos, deveriam
definir o que é uma família.
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