Leve, criativa e corajosa, A Senhora da Van é mais uma daquelas preciosas produções que vez ou outra surgem diretamente da "Terra da Rainha". Inspirado numa "história em grande parte verídica", o diretor Nicholas Hytner (As Bruxas de Salém) surpreende ao investir em um relato narrativamente ousado, mostrando categoria ao adaptar a simpática peça autobiográfica do escritor Alan Bennett. Com um argumento ágil e refinado em mãos, o realizador abraça a linguagem teatral ao narrar a inusitada amizade entre uma indomável moradora de rua e um bondoso dramaturgo, equilibrando a comédia, o drama e uma pitada de suspense ao desvendar os segredos por trás desta misteriosa protagonista. O resultado é uma mistura imprevisível e naturalmente divertida. Um longa que, mesmo diante do afiado senso de humor inglês e do inesperado teor metalinguístico, atinge o seu ápice na estupenda atuação de Maggie Smith. Uma atriz que, do alto dos seus 81 anos, mostra fôlego de sobra ao nos brindar com uma personagem caótica e radiante.
Com roteiro assinado pelo próprio Alan Bennett, A Senhora da Van se esquiva dos melodramas ao construir esta revigorante história de amizade. Como um bom representante do cinema britânico, o longa foge do lugar comum ao abrir mão do sentimentalismo barato, adotando um tom sóbrio que só acrescenta mais peso a esta sincera e excêntrica relação. Trocando as lágrimas forçadas pela sarcástica veia cômica, Nicholas Hytner acompanha a rotina do solitário Alan Bennett (Alex Jennings), um escritor bem sucedido que levava uma vida confortável em um requintado bairro londrino. Isso até conhecer a incorrigível Mary Shepherd (Maggie Smith), uma senhora ranzinza que após um evento traumático resolveu viver em uma van. Dona de hábitos nada higiênicos, a idosa era um incomodo constante para os moradores da região, principalmente quando estacionava o seu veículo\casa na frente das residências dos seus "vizinhos". Intrigado com a presença desta curiosa figura, Alan era o único que parecia realmente ser solidário com a moradora de rua, a ajudando sempre que preciso. Disposto a desvendar os mistérios em torno do passado de Mary, o dramaturgo resolve oferecer a garagem da sua casa como um estacionamento fixo para a van dela. Mesmo incomodado com as manias e a insanidade da idosa, Alan passa a enxergar nela a inspiração para a sua próxima criação, iniciando uma poderosa relação de companheirismo e troca de experiências.
Sucesso nos teatros britânicos, A Senhora da Van ganha uma releitura altamente criativa nas mãos de Nicholas Hytner. Amparado pela força do texto do autor Alan Bennett, ora rebuscado e teatral, ora sensível e objetivo, o diretor é sagaz ao proteger os segredos por trás da instigante protagonista, investindo numa abordagem metalinguística ao narrar a "investigação" do escritor durante a realização da peça que deu origem ao filme. Através de um recorte corajoso, o argumento acompanha não só a intimista história de amizade entre Alan e Mary, como também o processo de criação do autor durante a produção da obra, mostrando com comedimento e bom humor o impacto desta exótica relação na rotina dos personagens. E isso sem descaracteriza-los por um segundo sequer. Ainda que o filme atinja o seu ápice quando se volta para o nebuloso passado de Mary, é interessante ver como Hytner consegue fazer com que os dois protagonistas funcionem tanto separadamente, quanto em conjunto, revelando pouco a pouco os motivos que os levaram as suas respectivas condições. Além disso, apesar da premissa em si não soar tão inovadora, o roteiro aposta em particulares soluções narrativas, adicionando uma série de camadas a esta aparentemente despretensiosa comédia britânica. Sem querer contar muito, a maneira com que o longa separa o Alan escritor do Alan personagem é brilhante, uma sacada original e coerente com a proposta do longa.
Nada, no entanto, supera a primorosa atuação da veterana Maggie Smith. Com um vigor impressionante, a atriz abraça com rara categoria as nuances da complexa Mary, criando uma personagem totalmente imprevisível aos olhos do público. Indo da ranzinza à afetuosa, da insanidade à lucidez, do exagero à sutileza, Smith esbanja expressividade ao traduzir o turbilhão de emoções enfrentados pela moradora de rua, nos presenteando com uma performance sarcástica. Quando necessário, porém, a atriz interioriza os dramas da sua complexa protagonista com enorme sensibilidade, dando ao diretor a possibilidade de criar cenas ternas e comoventes. Dividindo a tela com Smith, Alex Jennings (A Rainha) convence ao criar um tipo gentil e reservado. Contrastando com a instabilidade de Mary, Alan surge como um individuo contido e generoso, um homem "encantado" por esta figura pouco ortodoxa. Apesar da racionalidade do escritor, Jennings absorve a frieza dele com absoluta humanidade, permitindo que o seu personagem dialogue com sentimentos mais sinceros durante a convivência com a sua indomável "vizinha". A química entre os dois, aliás, se revela um dos pontos altos do longa, numa relação que só evolui ao longo dos envolventes 100 minutos de projeção. Além de Smith e Jennings, Hytner conta ainda um experiente elenco de apoio, turbinado por nomes como os de Jim Broadbent (A Viagem), Roger Allam (V de Vingança) e Frances de la Tour (A Invenção de Hugo Cabret). Todos em personagens pequenos, mas que de alguma forma contribuem para o impecável andamento da trama.
Por mais que o humor tipicamente britânico possa parecer incômodo aos olhos espectador mais desavisado, A Senhora da Van adota uma abordagem irreverente ao construir uma adorável história de amizade. Mesmo com alguns pequenos deslizes, a maioria deles envolvendo a superficial relação entre Alan e a sua enferma mãe, Nicholas Hytner arrisca ao entregar um clímax totalmente "fora da caixinha", um arremate à altura da sua fantástica personagem. Na verdade, ao abraçar a piração em torno dos relatos do escritor, o diretor inglês eleva consideravelmente o nível da película, brincando com as nossas expectativas ao embarcar numa mudança de rumo ousada e cheia de vida. Um desfecho único para uma produção que cisma em não se render as fórmulas fáceis.
Está na lista para conferir.
ResponderExcluirAbraço
Me surpreendeu Hugo. Já esperava algo de bom, mas nem tanto. Valeu pela visita. Abs.
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