sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Meu Nome é Ray

Íntimo e sutil, longa esbanja propriedade ao discutir a questão da transexualidade

Com atuações sólidas, um roteiro recheado de sentimento, uma premissa extremamente atual e uma revigorante abordagem intimista, Meu Nome é Ray é um daqueles pequenos grandes filmes que não merecem passar despercebidos. Sem a pretensão de soar panfletário, o drama dirigido por Gaby Dellal cativa ao tratar a questão da transexualidade sob um prisma amplo e compreensivo. Impulsionado pela soberba atuação da talentosa Elle Fanning, numa das mais desafiadoras personagens da sua já memorável filmografia, a película encanta ao não só se concentrar nos dilemas do jovem protagonista, como também no impacto desta drástica mudança na rotina da sua disfuncional família, levantando uma série de importantes temas com autenticidade e uma bem-vinda dose de ironia.

Descomplicado, o roteiro assinado pela própria Gaby Dellal, ao lado de Nikole Beckwith, rompe com os mais enraizados tabus ao tratar a transexualidade num contexto realístico e genuinamente familiar. Por mais que, aparentemente, o longa aponte a sua mira para personagens modernas e desconstruídas, o argumento é astuto ao aproximar as realidades, ao realçar as dúvidas de uma errática mãe diante de uma decisão tão significativa. Sem a intenção de encontrar justificativas por trás de tamanha mudança, Dellal é cuidadosa ao acompanhar os passos do obstinado Ray (Fanning), um jovem que, cansado do seu corpo feminino, decide acelerar o processo e passar por um tratamento de reposição hormonal. Por ser menor, entretanto, ele precisaria da aprovação da sua mãe, a dedicada Maggie (Naomi Watts). O que parecia uma decisão fácil, porém, ganha um agente complicador quando ela descobre que a aprovação dependia também do aval paterno. Contando com o suporte da sua independente mãe (Susan Sarandon) e da namorada dela (Linda Emond), Maggie decide ir atrás do distante pai, sem saber que as suas incertezas quanto ao procedimento só cresceriam durante este espinhoso processo.


Com uma envolvente pegada naturalista, Gaby Dellal acerta ao partir de um ponto de vista já bem definido. Apesar da pouca idade, Ray é um jovem resolvido quanto a sua sexualidade e o seu gênero, uma sacada inteligente principalmente por jogar a "responsabilidade" para os mais velhos, no caso as duas cativantes figuras maternas. Por mais que o roteiro em nenhum momento deixe de explorar as questões mais íntimas da protagonista, entre elas a sua busca pelo corpo masculino, os seus interesses amorosos e os seus conflitos diante da sua indefinida situação, é legal ver os tabus em torno da transexualidade discutidos dentro de um cenário tão desconstruído. Através de diálogos reais e contundentes, o roteiro foge do lugar comum ao realçar a incoerência das personagens, ao trata-las como figuras humanas, com preconceitos, inseguranças e falhas. Sem nunca soar panfletário, o roteiro é sensível ao se debruçar sobre os dilemas de Maggie, ao mostra-la como uma mãe comum, apesar da sua rotina disfuncional e da sua mentalidade "mais aberta". Uma universalidade que, indiscutivelmente, eleva o patamar da trama. E Dellal não para por aqui. Indo além das questões de gênero, o longa é ágil ao descortinar os caóticos problemas familiares da figura materna, transitando habilmente entre a comédia e o drama ao discorrer sobre a ausência paterna e o impacto de uma relação mal resolvida na realidade da filha. Mesmo com tantos imbróglios em mãos, a realizadora é perspicaz ao dar o mesmo peso para todos estes arcos, reforçando o forte grau de intimismo da película ao construir a sincera conexão entre as personagens e a inusitada dinâmica familiar.


Um predicado, num primeiro momento, valorizado pela espontânea direção de Gaby Dellal. Tirando o máximo da habitável direção de arte, a casa em que o quarteto vive, por si só, reflete a difuncionalidade e a autenticidade proposta pelo roteiro, a realizadora investe na câmera na mão, criando um 'mise en scene' fluído marcado por expressivos enquadramentos fechados e imersivos planos médios. A força motora de Meu Nome é Ray, entretanto, reside nas primorosas atuações do entrosado elenco. Uma das atrizes mais versáteis da nova geração, Elle Fanning adiciona mais uma grande performance à sua filmografia. Mais do que simplesmente abrir mão da sua vaidade feminina, ela emociona ao traduzir a inquietude de Ray, o seu desconforto e obstinação, imprimindo peso ao texto seja nos momentos mais comedidos, seja nas sequências mais explosivas. Sem querer revelar muito, a explosão do jovem diante de uma revelação é de arrepiar, uma cena marcante que só reforça o talento de Elle Fanning. Assim como a jovem atriz, Naomi Watts cativa ao encarar essa mãe à beira de um ataque de nervos. Com uma bomba prestes a estourar em mãos, ela brilha ao traduzir o turbilhão de emoções em torno da sua Maggie, permitindo que o público compreenda tanto as suas dúvidas, quanto as suas falhas. E como se não bastassem as presenças de Fanning e Watts, Susan Sarandon e Linda Emond enchem a tela de humor ao darem vida a um carismático casal disposto a romper amistosamente o elo com a sua filha.


No embalo da descolada trilha sonora de West Dylan Throdson (Fragmentado), Meu Nome é Ray une três gerações num filme atual que comove ao tratar a transexualidade sob um ponto de vista abrangente e universal. Não espere, porém, bandeiras levantadas e vazios discursos "lacradores". Na verdade, diante de um tema tão relevante, Gabby Dellal é incisiva ao falar sobre a face mais complexa da mudança de gênero, ao revelar o quão drástica pode ser esta decisão, usando esta "transformação" como um inspirado ponto de partida para um terno drama familiar. 

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