sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Deus Branco

A revolta dos cães

Lançado no Brasil no final de fevereiro, justamente no período em que os indicados ao Oscar geralmente tomam conta do já enxuto circuito de arte nacional, Deus Branco (White God, no original) é uma fábula urgente e visceral que não merece passar despercebida. Conduzido com enorme intensidade pelo diretor Kornél Mundruczó, o longa esbanja originalidade ao propor um corajoso duelo de classes dentro de um cenário absolutamente singular. Ainda que a temática em questão não seja propriamente uma novidade, o realizador húngaro coloca o dedo na ferida ao expor sob um primitivo ponto de vista o impacto da violência e da desigualdade na rotina dos marginalizados, utilizando o "melhor amigo do homem" como o instrumento para a construção de uma mensagem universal e naturalmente devastadora. Numa sacada de mestre, ao invés de retratar esta dolorosa realidade dentro de uma perspectiva mais tradicional, Mundruczó volta a sua inventiva mira para o universo canino, escancarando através destes simpáticos animais a faceta mais hostil e desprezível dos seres humanos. E isso sem precisar apelar para os recursos do CGI, o que só amplia o nível qualidade e realidade desta crítica película.



Recebido com entusiasmo na edição 2014 do Festival de Cannes, onde faturou, inclusive, o concorrido prêmio na mostra Un Certain Regard, Deus Branco é um daqueles trágicos relatos que parecem se antecipar aos fatos. Isso porque, um ano depois do lançamento do longa, a Hungria se viu no centro da crise dos refugiados sírios, uma situação calamitosa que rendeu uma série de relatos desoladores, entre eles a amplamente divulgada agressão de uma cinegrafista a um dos expatriados. Não se engane, porém, com a aparente especificidade do enredo. Mesmo rodado num cenário tipicamente europeu, o argumento assinado pelo próprio Mundruczó, ao lado de Viktória Petrányi e Kata Wéber, é impecável ao passear por temas totalmente urbanos e ao traduzir a desigualdade enfrentada por parte da população nas grandes metrópoles. Na trama, filha de pais separados, a musicista Lili (Zsófia Psotta) é obrigada a se mudar para a casa do seu pai biológico, o cabisbaixo Daniel (Sándor Zsótér), durante três meses. Ao chegar no prédio, no entanto, uma das vizinhas reclama da presença de Hagen, o seu fiel cão, e decide denuncia-los ao centro de zoonose. Surpreendido com a visita de um inspetor, Daniel decide colocar o cachorro num abrigo, causando uma raivosa reação na sua filha. Separados à força, enquanto o acuado Hagen se vê obrigado a experimentar a hostilidade das ruas, a solitária Lili resolve fazer de tudo para reaver o seu amigo, iniciando uma jornada capaz de causar uma grande revolução pelas ruas da Hungria.


Impulsionado pela fantástica sequência de abertura, um plano instigante e incrivelmente realizado que nos conecta quase que instantaneamente à trama, Deus Branco é inicialmente cuidadoso ao construir a cativante relação entre Lili e Hagen. Sob um ponto de vista mais intimista, Kornél Mundruczó esbanja sensibilidade ao realçar a cumplicidade entre a menina e o seu fiel cachorro, uma amizade sincera estabelecida com primor ao longo do envolvente primeiro ato. A cena em que os dois são separados, por exemplo, é de cortar o coração, um momento denso e emotivo capturado com espantosa beleza pelas lentes do diretor húngaro. Digo mais, apesar do precioso contexto sócio-político da trama, é na parceria entre os dois que reside a força motora da película, principalmente quando o roteiro decide explorar os paralelos entre as atitudes de Lili e Hagen. Nas entrelinhas, inclusive, é possível perceber um perspicaz questionamento envolvendo o peso do divórcio na rotina de uma adolescente, o que fica bem claro quando percebemos a reação da jovem, e consequentemente do seu cão, diante do repentino abandono. Neste sentido, aliás, é preciso elogiar também a maneira humana com que o longa conduz a complicada conexão entre o ausente pai e a sua inconformada filha. Ainda que de forma breve, o diretor se esquiva dos clichês ao abrir um espaço suficiente para o desenrolar desta distante relação, permitindo que o espectador enxergue o amor por trás da raiva e da solidão exprimida pelos dois personagens.


É quando se volta para o agressivo tom fabulesco, no entanto, que o argumento revela a sua originalidade. Por mais que o cenário apresentado no longa não seja propriamente uma novidade, vide o clássico literário A Revolução dos Bichos e a nova versão de O Planeta dos Macacos, Kornél Mundruczó caminha por um terreno mais espinhoso ao utilizar a (pseudo) irracionalidade dos animais para realçar o primitivismo dos próprios humanos. Fazendo um excelente uso do senso comum envolvendo a personalidade canina, àquele que diz que o cão é um reflexo do seu dono, o realizador húngaro usa a degradante jornada do inocente Hagen para revelar o impacto da violência, da desigualdade social e do completo abandono na rotina dos marginalizados. Sem perder a mão, Mundruczó não poupa ao espectador ao reproduzir a brutalidade por trás desta devastadora realidade, flertando com elementos mais contundentes à medida que a trama desvenda os motivos por trás de tamanha revolta. Melhor ainda, aliás, é a maneira com que o realizador explora a questão da raça dentro da película. Numa sagaz opção, o argumento estabelece um universo em que apenas os cães mestiços, os populares vira-latas, são perseguidos pelo governo, no caso o centro de zoonose. Para serem tratados como "iguais", os donos precisavam pagar uma espécie de taxa, uma licença para mantê-los inseridos na sociedade, o que obviamente se torna o estopim para a revolução liderada por Hagen. Uma sacada realmente inteligente, já que universaliza alguns dos mais enraizados dilemas sociais sem precisar apontar o dedo para determinada região ou conflito.


Por outro lado, embora a explosão de violência no terço final seja compreensível dentro deste contexto fabulesco, a crítica social perde força no momento em que a revolta pessoal de Hagen assume o protagonismo. Na verdade, o argumento peca pelo preciosismo ao dar um "desfecho" para todos os personagens que cruzaram o caminho do cão, inflando um último ato que poderia ser brilhantemente resolvido com cinco minutos a menos. Isso porque o reflexivo clímax é primoroso, um desfecho comovente, poético e totalmente coerente com o teor igualitário defendido pelo filme. Contudo, o chamariz de Deus Branco reside na utilização do numeroso "elenco" canino. Apesar das dificuldades envolvendo a utilização de animais no set de filmagens, Kornél Mundruczó esbanja categoria ao trabalhar com cerca de duzentos cães nos planos mais abertos, ampliando o senso de fúria e realismo em torno dos ataques da matilha. Além disso, impulsionado pela ágil e engenhosa fotografia de Marcell Rév, o diretor impressiona ao filmar os movimentos e as expressões dos animais com extrema naturalidade, principalmente quando o assunto é o simpático Hagen. Preocupado em capturar os instintivos movimentos do labrador, Mundruczó supera os desafios ao coloca-lo ora em situações de extrema violência, ora em situações mais emotivas, criando uma série de momentos críveis e absolutamente densos. Na boa, o olhar de tristeza do cão é tão puro e honesto que fica difícil de traduzir em palavras. E isso, é bom frisar, sem que o estado físico dos animais fosse colocado em risco. Nas cenas mais hostis, inclusive, o diretor é habilidoso ao utilizar o poder de sugestão e a afiada montagem, evitando que os animais dividam a tela com os atores nestes momentos mais ríspidos.


Contando ainda com a energia jovial da surpreendente Zsófia Psotta, impecável ao transmitir o misto de inocência, raiva e amadurecimento da sua Lili, Deus Branco é um drama crítico e visceral sobre uma realidade cruel geralmente negligenciada nas grandes metrópoles. Com uma trilha sonora imponente, uma direção vigorosa e um roteiro recheado de camadas, este instigante exemplar do cinema húngaro consegue construir uma poderosa crítica social sem abdicar do entretenimento, nos brindando com uma fábula reflexiva capaz de provocar as mais variadas emoções ao narrar a desventurada jornada de uma isolada jovem e o seu fiel amigo cachorro. Não espere, porém, um daqueles filmes adocicados e otimistas. Quando necessário, Kornél Mundruczó não se incomoda em retratar a violência presente na nossa sociedade sob o ponto de vista canino, o que pode se tornar um problema para os espectadores mais sensíveis à causa. Os fins, no entanto, justificam os meios, principalmente quando percebemos que, em sua interpretação mais óbvia, a película levanta uma gigantesca bandeira em defesa do direito dos animais.

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