quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Crítica | Um 'coming of age' sobre o agora, "Licorice Pizza" assume a inquietude juvenil como força motora num filme cuja beleza está na imperfeição


Licorice Pizza não é "só" um filme. Licorice Pizza é um estado de espírito. Licorice Pizza é a adolescência em formato cinematográfico. O cultuado diretor Paul Thomas Anderson não se envergonha em propor um longa sobre o aqui e agora. Sobre a fome de um grupo de jovens por novas experiências. Simples assim… E complexo ao mesmo tempo.

PTA se encanta por um ideal setentista de liberdade. A Los Angeles de Licorice Pizza permite qualquer coisa. O exagero é parte da construção de um coming of age que flerta com a paródia sobre o showbiz para entender a singular visão de mundo dos seus personagens. Gary Valentine (Cooper Hoffman) era uma estrela da TV adolescente com prazo de validade. Por trás da fachada 'bon vivant' existia um garoto como qualquer outro: errático, impulsivo, excitado, imaturo. Um rapaz disposto a construir um novo futuro como um "homem de negócios".

É fascinante ver como Licorice Pizza enxerga o ridículo num mundo pouco retratado em Hollywood: o dos astros teen. PTA usa o ideal esquizofrênico de sucesso do protagonista como o ponto de partida para um drama geracional tão afetado, quanto afetuoso. Gary simboliza uma emancipação disfuncional. Gary se veste como adulto, mas age como criança. "Ele ainda consegue", diz o produtor de um comercial de ternos ao perceber que o crescido garoto de outrora ainda tinha o seu charme infantil.

Seria uma afirmação sincera? Ou parte de uma encenação criada para não machucar o ego de um jovem prestes a encarar uma dura derrocada? Licorice Pizza não cogita sequer responder a essa pergunta. O roteiro trata o fim da adolescência como uma efêmera corrida contra o tempo. Haja fôlego! Gary age e reage seguindo os seus instintos juvenis. O contexto setentista surge apenas como um alicerce para um retrato de uma geração livre, leve e sem rumo.


Licorice Pizza é um filme com DNA adolescente. Com espinha na cara. Com suor impresso na tela. Com o calor gerado por hormônios em fúria e sentimentos conflitantes. PTA assume a inquietude dos personagens como parte da construção narrativa. Ele abraça também o deboche, a inconsequência e até a natureza errática destes garotos pré-dispostos a viver algo que desconheciam. É a beleza da imperfeição. De um flerte aparentemente rotineiro nasce a relação que catalisa a trama. Alana (Alana Haim) é o rosto sem filtros de um coming of age relutante em aceitar o amadurecer como único caminho. Por que precipitar o que pode ser saboreado por mais tempo.

A imaturidade de Gary e Alana rege uma trama que acelera sem ter onde chegar. Com pressa, mas sem destino. PTA liberta os seus personagens do fardo limitante do objetivo. Querer é poder e ao mesmo não ter nesta fase da vida. Gary quer conquistar Alana, mas não sabe como. Alana quer abrir novas portas para o mundo adulto, mas se recusa a romper com o seu "eu" juvenil. São nos detalhes que o diretor realça a essência dos seus erráticos personagens.

Na maneira com que Gary não consegue viver um momento de rara intimidade com Alana sem deixar de pensar em tocar nos seios dela. Na maneira com que a "executiva" Alana parte em disparada após ver o seu novo chefe, um vereador aspirante a uma vaga no congresso (Ben Safdie), a convidar para um jantar. São gestos involuntários. São crianças incapazes de lidar sobriamente com as suas emoções.

Licorice Pizza renega a lucidez. PTA investe numa narrativa por vezes até caótica para mergulhar no mundo destes jovens. Ele não está preocupado nos "comos" ou "porques". É um filme guiado por reações. Por uma correria desenfreada que, mesmo quando gira em círculos, ainda tem muito a revelar sobre uma LA sem limites, uma Hollywood desvairada e uma nova geração forjada neste mundo em que basicamente tudo era possível.

PTA une Gary e Alana através da diferença entre eles. Com um direção repleta de engenhosos momentos de intimidade (os planos fechados na troca de olhares revelam a verdade que os adolescente relutam em verbalizar), o cineasta espelha a vontade dos dois personagens com a intenção de saborear aquilo que eles não podiam enxergar. O amor que cresce da admiração. A paixão instigada pelo ciúme. A empatia gerada pelo reconhecimento. São jovens, agindo como jovens, num filme que permite que eles ajam como como jovens sem julgamentos, obstáculos e grandes consequências.

PTA não precisa interferir para criar. Licorice Pizza respeita a natureza dos seus personagens e a liberdade deles na tomada de decisões. O que se torna um material fértil nas mãos dos radiantes Cooper Hoffman (filho do saudoso Philip Seymour Hoffman) e Alana Haim. É praticamente impossível dissociar um do outro aqui. São duas atuações naturais. Eles prezam pela verdade falível dos seus personagens. Eles entregam o nível de intimidade que um filme tão apegado ao agora precisava para empolgar. Não é só química. É tempo de comédia. É expressividade no olhar. É um senso de dramaticidade que floresce na sutileza dos pequenos gestos. Poucas cenas dizem tanto sobre o que é Licorice Pizza quanto a sequência do jantar no último ato. Ali, emoldurada num espelho, Alana enxerga a vida adulta. Ali, perdida entre dois homens, PTA enxerga o abismo que separa a pressa por viver dá pressa por crescer. Haim entrega o calor. Cooper a delicadeza. Eu me emocionei por diversas vezes em ver no garoto as feições do saudoso Philip Seymour Hoffman. Os trejeitos. A serenidade que diz tudo. Tal pai, tal filho… 

Por que crescer? É preciso mesmo? Licorice Pizza corre no ritmo de dois adolescentes erráticos numa obra que causa um misto de fascínio e admiração a partir da sua imperfeição. Quem se importa se alguns personagens somem e desaparecem ao bel prazer do roteiro? Quem se importa se os protagonistas mudam de curso num piscar de olhos? Quem se importa com a banalidade dos diálogos tipicamente juvenis? Tudo é parte de uma experiência imersiva. Uma volta ao passado. Um vislumbre da inquietude 'teen' tomada pela vida adulta. Não é só sobre as memórias criadas. É sobre estímulos, sensações e o caos íntimo que dita esta complexa fase da vida.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Crítica | Sensível e acolhedor, "Sempre em Frente" busca na verdade infantil a esperança de um novo futuro


"Quando pensa no futuro, como você imagina que vai ser?". Em "Sempre em Frente", o sensível diretor Mike Mills parte desta pergunta para mergulhar no caótico mundo em que vivemos sob a perspectiva infantil de uma nova geração prestes a ser engolida pela realidade. O cineasta enxerga a esperança na pureza destas crianças. O cineasta, ao mesmo tempo, repercute o nosso processo de formação/deformação ao usar o presente como um melancólico contraponto.

O que fascina em "Sempre em Frente" é notar como o roteiro assinado pelo próprio diretor rompe com os clichês dos 'coming of age movies' ao tratar adultos e crianças em condição de igualdade. Na verdade, Mills usa a cativante relação entre tio (Joaquin Phoenix) e sobrinho (Woody Norman) como uma espécie de espelho. O presente se reconhece na angústia do futuro. O futuro se entristece ao enxergar o presente como um possível destino.

Sob a óptica adulta, "Sempre em Frente" pode ser considerado uma obra sobre o difícil processo de reconexão com o "eu" infantil. Com um texto/direção pautado pelo intimismo, Mills desenvolve a troca de experiências entre Johnny e Jesse a partir das dúvidas. Estamos diante de um filme que busca respostas para perguntas que não temos como controlar. Ou temos? O documentarista Johnny viaja pelos EUA disposto a ouvir a verdade das crianças. Seus questionamentos revelam a esperança de um futuro melhor. Mills enxerga a maturidade de uma nova geração atenta à realidade do mundo. As crianças falam em igualdade, em justiça social, em respeito às diferenças.

Boa parte destes depoimentos, contudo, são ilustrados com imagens da rotina das grandes metrópoles. Engarrafamentos. Grandes arranha-céus. Caos urbano. Planos abertos de metrópoles desumanizantes. Um paralelo revelador. Será que a pureza dos entrevistados sobreviverá ao ritmo do mundo em que vivemos? Será essa a nova geração que irá fazer a diferença? Mike Mills não tem esta resposta. "Sempre em Frente", contudo, prefere acreditar.

Para isso, o cineasta funde o documental/macro ao ficcional/micro determinado a estudar o efeito transformador na relação entre o presente e o futuro a partir da intimista jornada de conexão entre os protagonistas. Guiado pela serena performance de um caloroso Joaquin Phoenix e pela complexa presença do pequeno Woody Norman, Mills se encanta pela natureza reflexiva desta troca de experiências. Embora em posições obviamente diferentes, Johnny e Jesse esbarram em questões comuns a crianças e adultos. Ambos experimentam a solidão. Ambos enfrentam o abandono. Ambos temem o futuro. Ambos estão dispostos a mudar o presente.

Quando Johnny encara Jesse ele encontra as dúvidas que um dia já foram suas. Mills, entretanto, enxerga um novo rumo na precocidade destas crianças. Na honestidade no trato das emoções. Por trás das birras infantis se esconde a verdade de um menino comunicativo que teme a ausência da mãe e a doença do pai. Por trás da melancolia adulta existe a verdade de um homem silencioso que sofre diante da ausência da mãe e da falta de raízes.

"Você acha que eu vou ser igual ao meu pai", pergunta um temeroso Jesse. "Não! Você sabe lidar melhor com os seus sentimentos", responde um convicto tio com a certeza que ali estava a criança que a sua geração não lhe permitiu ser. A luminosa fotografia em preto e branco de Robbie Ryan reforça os leves contrastes entre os dois, sempre prezando pelo espaço dos personagens. A câmera de Mills muitas vezes fica à espreita. O cineasta se distancia para enxergar o todo e se aproxima para realçar a beleza de uma relação regida pela verdade.

Em "Sempre em Frente", o novo futuro é construído a partir do presente num filme belíssimo sobre o crescer, o viver e o amadurecer na caótica estrutura social em que vivemos. Mills isola os protagonistas deste mundo reconhecível ao mergulhar na intimidade dos personagens. Nos laços solidificados ao longo do percurso. Nas memórias criadas ao longo do caminho. São elas que fazem o presente seguir acreditando num futuro melhor.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Crítica | "O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface" se equilibra perigosamente entre a brutalidade e a imbecilidade numa 'requel' frustrante


Em 1974, o cineasta Tobe Hooper abalou as estruturas do cinema de horror com o lançamento de "O Massacre da Serra Elétrica". Desde "A Noite dos Mortos Vivos" (1968) Hollywood não via um filme tão cru chegar ao mainstream. Uma obra marginal, mas com virtudes estéticas inegáveis. Um longa visceral, mas capaz de usar o terror para expor uma outra face dos EUA. Um país consumido pelo ódio, pela miséria e pela disfuncionalidade. Uma América que os EUA destrinchou sem pudor ao longo dos anos 1970.


Após o sucesso do cultuado longa setentista, muitos produtores tentaram revitalizar a marca "Texas Chainsaw Massacre". Nenhum chegou perto de conseguir. Nenhum conseguiu enxergar além do peso da violência gráfica. Talvez a mais ousada dessas continuações, "O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface" renega tudo o que foi lançado nas últimas décadas ao se assumir como uma sequência direta do original.


É interessante ver como a produção Netflix dirigida por David Blue Garcia dialoga com o teor do hit de horror de 1974 ao focar primeiro no elemento social. Os jovens ignorantes do passado ficaram para trás. A nova geração "invade" com ideais próprios. Sobreviventes de um atentado numa escola norte-americana, os engajados Dante (Jacob Latimore), Melody (Sarah Yarkin), Ruth (Nell Hudson) e Lila (Elsie Fisher) resolvem tirar proveito da decadência econômica de uma cidade do interior para estabelece um utópico conceito de futuro através da especulação imobiliária.


Em "O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface", as boas intenções dos jovens adultos escondem a gentrificação. Assim como no original, Garcia usa a inocência como o botão que aciona a explosão de violência. Um começo promissor aniquilado, primeiro, pela maneira descuidada com que o roteiro de Chris Thomas Devlin mergulha nas intenções dos protagonistas. A ambiguidade com que o texto explora o viés progressista dos personagens não é por si só um problema. O que pesa aqui é ver como o filme trata temas sensíveis como a violência gerada pela bélica sociedade americana apenas como um mero gatilho narrativo sem peso. É a violência como resposta a violência.


"O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface" se equilibra perigosamente entre a brutalidade e a imbecilidade numa sequência que distorce, mas entrega quando o assunto é o horror. Por trás do mau uso de temas complexos existe um argumento que funciona dentro do que se propõe. Green enxerga a beleza no horror ao resgatar a imponência do temido Leatherface com um olhar que humaniza para chocar. Uma abordagem que, embora faça pouco sentido, não afeta em nada a ferocidade da continuação. A sequência do ônibus, em especial, (mesmo com um CGI sem peso) entrega aquilo que o público esperaria ver de um filme que traz no título as palavras "massacre" e "serra elétrica".


A violência em "O Retorno de Leatherface" faz jus ao original. Garcia resgata a potência visual da obra de Tobe Hopper ao criar sequências imagéticas capazes de enervar. Isso até o longa sucumbir aos clichês de dez entre dez filmes de horror pasteurizados. Isso até descobrimos que o passado, aqui, está a serviço de um novo (e frustrante) começo. Com um último ato desastroso, "O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface" termina zombando da inteligência do espectador ao mostrar o quão grande pode ser o abismo que separa um filme brutal de uma obra pesada.


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Crítica | Em "A Mulher que Fugiu", Hong-Sang Soo invade a aconchegante rotina de uma mulher à procura de respostas para perguntas nunca verbalizadas



Existe uma aura aconchegante em "A Mulher que Fugiu" que nos mantém estranhamente conectados com uma obra em que - à rigor - pouca coisa acontece. O cultuado diretor Hong Sang-soo nos seduz com um cinema pautado pelo rotineiro enquanto segue os passos de uma mulher à procura de algo escondido nos detalhes. O que ela quer encontrar?


Com o possessivo marido numa viagem de negócios, a simpática Gam-Hee (Kim-Min Hee) embarca para o interior disposta a recuperar o vínculo com três amigas do passado. O que nós vemos a partir daí são diálogos banais sobre o dia a dia, sobre projetos para o futuro, sobre desilusões amorosas, sobre o passado. O tipo de papo que qualquer amigo de longa data teria após um período de separação.


Uma abordagem rotineira que tende a dividir o público. Uns vão achar o filme lento. Outros vão contestar o propósito. Ninguém, porém, poderá dizer que "A Mulher que Fugiu" não é um longa convidativo. Com uma câmera estática que captura as expressões dos personagens com um peculiar uso do zoom, Sang-soo se encanta pela natureza universal/reconhecível das suas personagens. É confortável ver a serenidade destas mulheres. Ver a funcionalidade 'clean' criada por elas. Experimentar o acolhimento. A empatia. O suporte. O cineasta se recusa a alimentar expectativas. "O que você esconde no terceiro andar", pergunta Gam-hee para a sua primeira amiga visitada. Por um segundo achei que existia um mistério escondido na aparente aleatoriedade da trama. A resposta não poderia ser mais anti-climática...


Existem, contudo, segredos escondidos em "A Mulher que Fugiu''. E eles estão nas entrelinhas. Na maneira com que a protagonista parece buscar respostas na rotina das suas amigas. A independência delas chama a atenção. O vazio também. Assim como os conflitos sentimentais, as imposições e a falta de voz numa estrutura desigual. Gam-hee quer dizer algo. Aquelas mulheres também. O não dito, entretanto, é mais elucidativo que as palavras verbalizadas. "A Mulher que Fugiu'' revela muito sem dizer nada através de imagens que abraçam o espectador. À procura de respostas, Gam-hee encontra a paz de um cinema vazio. Tem dias que é isso o que precisamos… 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Crítica | "O Beco do Pesadelo" rompe com a narrativa clássica ao enxergar o horror na monstruosidade humana


O que faz uma refilmagem acontecer? Um remake, para mim, precisa ter ideias próprias. Um remake precisa se emancipar na relação com o original. Um remake não pode se contentar com a simples "atualização". São poucos os que conseguem isso. Não à toa, a "moda" hoje são as populares 'requels'. Uma conveniente mistura de refilmagem com sequência pensada para apresentar o material fonte para uma nova geração. Poucos cineastas mergulham de fato no texto original de obras consagradas dispostos a extraírem algo autêntico delas.


Guillermo Del Toro, felizmente, é a exceção da regra. É fascinante ver o que o realizador faz em "O Beco do Pesadelo". Ele não tem pressa em assumir o controle sobre a sua versão do remake. Ele, só aos poucos, rompe com a narrativa clássica do ousado thriller noir de 1947 ao trocar o monstro no fundo da garrafa pelo monstro no fundo da alma. E ninguém entende de monstros como Del Toro...

Com apego aos signos de uma Hollywood clássica, o diretor é cuidadoso ao estabelecer os motivos em torno da refilmagem. Antes de impor a sua assinatura enquanto autor, ele mergulha na rotina dos circos itinerantes dos anos 1940 na busca pela imersão. A paciente construção narrativa é parte da quebra de expectativa criada. "O Beco do Pesadelo" não se apressa ao estabelecer a índole dos seus personagens. O imagético cenário é quase um protagonista no ato inicial. É através dele que Del Toro forja as peças de uma cruel história de ambição.

Num primeiro momento, "O Beco do Pesadelo" chama a atenção pura e simplesmente pela atualização proposta. As cores trazem uma nova textura para a trama. A elegante direção de arte reforça o vigor visual de um longa que nos transporta para outra época numa experiência rica em detalhes. A fotografia em tons de verde e vermelho escuro sugere a deterioração ofuscada pelo brilho das excêntricas atrações. A câmera de Del Toro, sempre em movimento, envolve os personagens querendo dizer algo sobre eles. Não existe espaço para planos estáticos aqui. Mesmo nas sequências mais intimistas, o realizador usa a angulação das cenas para estabelecer o jogo de poder nas micro-relações estabelecidas ao longo da obra. Um tabuleiro em constante mudança…

Em "O Beco do Pesadelo", o monstro escondido no fundo da garrafa é apenas uma sequela. Neste mundo de altos e baixos, Del Toro introduz os seus expressivos personagens com um olhar atento para a real posição deles naquele microcosmo. A partir da perspectiva de Stan (Bradley Cooper), um homem misterioso de passado nebuloso, o realizador mergulha neste universo determinado a enxergar as virtudes e os pecados.

Algumas peças, como o ganancioso Clem (Willem Dafoe), a inocente Molly (Rooney Mara) e o turrão Bruno (Ron Perlman), se revelam facilmente. Outras como o trágico Pete (David Strathaim), a sedutora Zeena (Toni Collette) e o próprio Stan possuem nuances complexas que nem o melhor dos mentalistas poderia decifrar com facilidade. São nestes tipos que Del Toro se interessa. É na ambiguidade deles que o diretor busca acessar os tais monstros escondidos no fundo da alma.

Em sua primeira hora, "O Beco do Pesadelo" fala basicamente a mesma língua do original ao desnudar os seus personagens a partir da relação deles com a ambição. Se por um lado é frustrante ver como Del Toro não se apega a dinâmica pupilo/mentor envolvendo Stan e Pete, por outro é intrigante ver como o roteiro rompe com o viés concessivo do clássico ao enxergar as armadilhas escondidas nas elipses. Del Toro estabelece o círculo vicioso sem se prender a ele. O cineasta se afasta da verve moralista para enxergar a corrosão humana num meio desigual

Em "O Beco do Pesadelo", Guillermo del Toro assume as rédeas do remake à medida que ele escancara a falta de controle numa estrutura que se alimenta da fragilidade humana. A Segunda Guerra Mundial é o contexto. O terror, aqui, não está simplesmente na deterioração do indivíduo. O horror está na relação do homem com uma engrenagem desvairada. Na sua jornada rumo ao topo, Stan cruza o caminho de tipos poderosos, como o atormentado Ezra (Richard Jenkins), de mulheres ardilosas, como a terapeuta Lillith (Cate Blanchett, puro de veneno), de indivíduos vulneráveis, como a solitária Miss Harrington (Mary Steenburgen, que elenco é esse!). Todos frutos de um mesmo meio. Todos vítimas dos seus monstros interiores. Ele não está interessado na pureza dos virtuosos. O foco está na angústia dos desvirtuados.

"O Beco do Pesadelo" troca o mistério dos thrillers noir pelo horror do mundo real num filme sobre os fantasmas de carne e osso. Almas consumidas pelo ódio, pela ambição, pela vingança, pela tristeza. Almas personificadas na magistral performance de Bradley Cooper. A autoestima do homem cego pela sua sede de poder é investigada com riqueza de detalhes numa atuação de alguém disposto a abraçar todas as nuances do seu Stan. Enquanto a câmera de Del Toro se movimenta com uma suavidade calculada, Cooper age/reage guiado pelo instinto de um homem forjado para sobreviver. É a total conexão entre ator e personagem. É a verdade encapsulada não num copo de bebida, mas na fraqueza de um corpo de carne e osso.

Em "O Beco do Pesadelo", o horror que se manifesta em tela (Del Toro assume a brutalidade sem culpa) é uma consequência da monstruosidade do indivíduo humano num filme que não se compadece pela realidade que criamos para nós mesmos. "Eu nasci para isso!", é a sentença final perfeita para uma crônica sobre o fim anunciado a cada transição temporal. A cada passo em falso. Não é difícil "decifrar" a realidade. O desafio é escapar dela sem se perder pelo caminho.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Crítica | "Matrix Resurrections" escolhe a pílula azul numa continuação com um ilusório conceito de controle num mundo tecnológico


A coragem é uma virtude pela qual eu sempre vou prezar no cinema. Ainda mais no mainstream. É sempre prazeroso ver um filme (ao menos tentar) fugir da mesmice. É sempre prazeroso ver a desconstrução de signos e convenções. "Matrix Resurrections'' é um filme corajoso. Isso é inegável. De volta a franquia que a consagrou, Lana Wachowski (agora em voo solo) revisita o cultuado universo criado no final dos anos 1990 com uma grande motivação: recuperar a autoria sobre a sua obra. O caminho encontrado pela realizadora é a provocação. É a subversão do que representa a Matrix no mundo em que vivemos.

As intenções de Lana eram as mais corajosas possíveis. Na prática, porém, "Matrix Resurrections" esbarra na visão pueril com que a cineasta discute a questão do controle numa sociedade midiática aberta à diluição da individualidade. Em 1999, fazia sentido propor uma alegoria pessimista sobre a vida num futuro tecnológico. Em 2021, não. Lana sabe disso. Não à toa, "Matrix Resurrections" (re)embaralha as cartas a fim de estabelecer uma nova realidade (simulada ou não).

Thomas Anderson (Keanu Reeves) não é mais o hacker antissocial isolado do mundo. A Matrix não é mais um conceito inacessível. A ação não é mais uma necessidade. O roteiro assinado pela própria diretora intriga num primeiro momento ao contestar a realidade fílmica da trilogia. Uma abordagem promissora. E se tudo não passou do surto de um criador de jogos sem controle sobre a sua obra? É impossível não enxergar a metalinguagem aqui. Lana, tal qual Thomas, é obrigada a lidar com as sequelas da sua criação. Com a distorção, com a banalização e com a saturação dos conceitos impressos no código fonte da franquia. 

Nos anos seguintes ao seu lançamento, "Matrix" se tornou referências para grupos extremistas, para políticos de direita (com direito a treta no Twitter envolvendo Lana, Elon Musk e Ivana Trump), para uma tóxica orda de trolls/fãs e até para discursos de coach. É a total incompreensão do que representa a mensagem antissistema defendida pelo longa. Lana não aceitaria isso calada.

O melhor de "Matrix Resurrections'', na verdade, está fora da Matrix. Está na maneira com que, nas entrelinhas, a diretora usa a jornada de um acuado Neo para não só retomar (ou pelo menos tentar) o ilusório controle sobre a sua criação, como principalmente para discutir o frágil conceito de "cinema de autor". Na base da ironia, a cineasta testa as expectativas do público ao romper drasticamente com a verve anárquica do original para desafiar a nossa compreensão do que representa a Matrix. 

Neste ponto, a continuação pode ser tratada como uma espécie de vírus. Do tipo que usa um app "confiável" para se instalar no hardware e mudar toda a programação do seu notebook/smartphone. Lana não quer roubar dados. Ela quer desfragmentar. Ela resgata o clima de romance superficial estabelecido no desfecho do primeiro filme para conduzir a jornada de Neo para um outro caminho. O herói agora não luta contra o sistema. Ela não luta contra um oponente imparável. Ele luta contra as suas paranoias. Ele luta por amor. Ele luta pelo direito de viver um sonho. 

Uma sacada promissora que se perde na Matrix quando percebemos que a energia desta sequência vem exclusivamente da pílula azul. Em Ressurection, Lana confunde desapego com descompromisso numa sequência com conceitos inteligentes, mas uma execução relapsa em basicamente tudo o que se propõe. São duas horas e vinte de pequenas provocações que nunca se convertem num grande filme.

A questão, aqui, não é a maneira corajosa com que o roteiro rompe com códigos inerentes a jornada do "escolhido". O problema está na dificuldade do longa em desenvolver todo o resto. Elementos narrativos básicos como a construção da ameaça, do antagonista, do novo mundo "integrado" e até do romance são sacrificados por um texto que se contenta com o deboche autoconsciente. Com exceção do debate sobre a relação entre um autor e a sua obra, a verve pretensamente anárquica da trama leva a estória para uma zona rasa, escapista e sentimentalista. O próprio Neo de Keanu Reeves parece apático em meio a uma jornada tão sem cara de jornada.

Para piorar, Lana repete erros comuns dentro da franquia, como a manutenção da subserviência feminina representada na figura de Trinity. De volta ao papel original, Carrie-Anne Moss é um mero peão narrativo pensado para motivar a jornada do herói. Ela segue sem voz. Segue sem espaço. Segue sendo um arquétipo pré-programado numa Matrix envelhecida. Esse, aliás, é talvez o grande pecado de "Matrix Resurrections''. Estamos diante de uma continuação versão beta de um aplicativo que nunca seria lançado.

Os efeitos visuais soam arcaicos. A visão de futuro tecnológico parece sem vida. As cenas de ação (com exceção do clímax) são requentadas. Lana se recusa a modernizar o quarto filme. O que só acontece, infelizmente, com as substituições de Laurence Fishburne e Hugo Weaving pelos talentosos Yahya Abdul Mateen II e Jonathan Groff. Uma alteração que prejudica as intenções do roteiro, principalmente na revigorada interação entre Neo e o agente Smith.

Uma pílula azul em formato fílmico, 'Matrix Resurrections" flerta com a provocação, mas se casa com um argumento até careta em vários aspectos. Irritar fãs intransigentes hoje é fácil. O difícil é criar um filme à altura do original a partir de uma visão de futuro binário tão desconectada da realidade fluida em que vivemos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Crítica | "Los Lobos" comove ao usar o drama de uma família de imigrantes para expor o vazio criado pela ilusão do "sonho americano"

Trazer a realidade do imigrante para a tela grande é sempre um desafio. Não somente pela responsabilidade assumida ao retratar a angústia de muitos. É difícil pensar o cinema a partir da rotina. A partir de uma história tantas vezes contadas. A partir de um contexto por si só pouco imagético.

Em "Los Lobos'', por exemplo, grande parte da trama se passa num quarto minúsculo esvaziado pela condição financeira de uma família mexicana recém-chegada aos EUA. A premissa segue uma lógica infelizmente reconhecível. Abandonada pelo marido, uma jovem mulher e seus dois filhos, os sonhadores Max e Leo (vividos pelos expressivos irmãos Maximiliano e Leonardo Najar Márquez), resolvem tentar a sorte no país vizinho. Enquanto as crianças sonhavam em ir para a Disney, Lúcia tinha total consciência do pesadelo que iria enfrentar.

É encantador ver como "Los Lobos'' expõe a rotina desta família de imigrantes ilegais num filme crítico, mas que se recusa a perder a ternura. Uma obra que crê não na ilusão da "terra das oportunidades", mas na união de uma comunidade que se reconhece no abandono e na exploração. Para isso, o sensível longa dirigido por Samuel Kishi rompe com a ideia de "capitalizar" em cima do drama. O vazio do quarto se torna um terreno fértil para um cineasta que precisa de pouco para dizer muito.

Embora o foco esteja no micro, mais precisamente na relação fraternal entre os pequenos e na reação ao "abandono" imposto por uma estrutura social insensível, "Los Lobos'' expande os seus horizontes ao buscar nos detalhes a dor que os três personagens evitavam expressar. Enquanto Lúcia revela a sua raiva ao limpar um fogão ou ao amassar uma foto, Leo e Max canalizam as suas frustrações através dos desenhos. A verve naturalista do longa (uma mistura de "Nomadland" com "Projeto Flórida") é interrompida sempre que a animação enche a tela nos lembrando da pureza daqueles meninos.

Kishi, a partir da perspectiva deles, se recusa a banalizar o esforço desta comunidade. Uns podem acusar o filme de flertar com a utopia. Uma visão cínica de mundo de quem não vive a realidade de uma família (entre tantas) que resiste na busca da dignidade tomada por um sonho.

O estetoscópio na mala de Lúcia sugere que estamos diante de alguém que vivia outra realidade no México. A opressora bandeira dos EUA em um galpão de uma megastore expõe a real posição daquela matriarca num país que prospera na base do suor do imigrante. A rotina é essa. Nós que perdemos a capacidade de nos importar. "Los Lobos'' é enfático nas suas sutilezas ao revelar o impacto de uma rotina disfuncional gerada por um modelo capitalista capaz de consumir quase tudo, menos o sonho de uma criança.


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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Crítica | "Spencer" troca os fatos por sensações ao pintar um retrato subjetivo sobre uma princesa disposta a desafiar o horror da realeza


Em "Spencer", o diretor Pablo Larraín propõe uma cinebiografia diferente. Uma obra que troca os fatos por sensações. O cineasta não busca apenas humanizar a figura de Lady Diana. Ele usa a pompa da realeza para tentar entender a mulher aprisionada por códigos repressivos. Esqueça o ícone. Esqueça a personalidade empoderada. Esqueça a princesa do povo. "Spencer" desafia o trágico destino da querida monarca disposto a criar a partir da perseguição enfrentada por ela.

Aos olhos de Larraín, um feriado em "família" num castelo no interior ganha ares de pesadelo. O palácio se torna um quartel. O título de princesa era um fardo pesado para qualquer indivíduo carregar. Lady Di (Kristen Stewart) começa o filme perdida. Literalmente. Ela não reconhece mais aquilo que foi. O seu passado é engolido pela névoa da bucólica região. Voltar para casa é regressar para o vazio.

É interessante ver como "Spencer" desafia uma visão bidimensional da realeza. Quando olha para as paredes do pomposo castelo de campo, Lady Di encontra retratos que a assustam. São mulheres emolduradas resumidas a um rótulo. São regentes lembradas não pelo que viveram, mas por aquilo que representaram. "Eu seria conhecida por qual adjetivo", pergunta Diana para a sua camareira vivida por Sally Hawkins. "Chocante", responde a confidente escolhendo uma palavra que descola a protagonista daquele cenário.

Em "Spencer", Larraín enxerga Lady Di como um corpo estranho na realeza. Ele, consciente do que era a vida midiática dela (e do seu trágico destino), persegue a protagonista com uma câmera invasiva que não respeita os espaços. A sua intenção, contudo, não é replicar o hábito da imprensa britânica. Larraín não quer encurralar. Ele quer entender. O diretor usa os códigos daquele conservador cenário para extrair sentimentos que ajudam a tornar tudo mais humano. É um retrato subjetivo em três dimensões. A reveladora fotografia de Claire Mathon, sempre prezando pela profundidade de quadro, nos permite enxergar as múltiplas faces de Diana diante do medo que a consome.

"Spencer" rouba a privacidade para enxergar a luta de uma mulher indômita à procura da liberdade tomada por uma coroa. Enquanto os figurinos remetem a icônica Lady Di, Larraín pressiona para extrair a verdade da menina/mulher/mãe. Enquanto a preciosa direção de arte reforça a pompa em torno da rotina da princesa, a câmera do realizador realça a deterioração da protagonista com planos imagéticos que mais parecem retratos trágicos de uma mulher asfixiada. São contrastes sintomáticos.

"Spencer" constrói este estudo de personagem a partir da relação entre o íntimo e o midiático. A casca remete a Lady Di que conhecemos. O foco, porém, está na essência. Naquilo que nunca vimos. Na angústia de uma princesa diante do horror do patriarcado. Na verdade nunca capturada pelos retratos bidimensionais emoldurados num palácio. Lady Di não queria ser um quadro sem vida.

Um retrato complexo potencializado pela monumental performance de Kristen Stewart. A alma de um projeto desafiador. A atriz personifica a dor de uma figura errática. Ela desmistifica o ícone sem abrir mão da energia radiante que tornou Diana a "princesa do povo". Stewart absorve o turbilhão de emoções enfrentado pela personagem numa atuação pautada pela reação a estímulos angustiantes. Todas as sequências envolvendo a princesa e seus filhos, em especial, possuem uma carga intimista brilhantemente capturada por uma atriz em constante evolução. É através da maternidade, aliás, que Larraín desafia a repressão da realeza. Não à toa, nestes momentos, nas sequências em que mãe e filhos conseguem se isolar daquele mundo, o filme ganha uma atmosfera diferente. Mais acolhedora, leve e serena. 

A beleza de "Spencer" não está na expressiva construção visual. Não está nos figurinos, na direção de arte, muito menos na vida dentro dos castelos da família real. O belo, aqui, está na coragem com que Larraín captura a subjetividade de uma regente com sede de liberdade. Ele se encanta pela nobreza de uma mulher do mundo. Ele desafia os fatos à procura de um novo começo. Ele ouve a voz da princesa que o povo não conheceu. Destino? Que destino? Voa Lady Di!


sábado, 29 de janeiro de 2022

Crítica | Provocante e indigesto, "Titane" usa o choque visual para nos fazer a sentir a dor de uma mulher consumida



Tentar racionalizar a imagem do cinema pode ser um exercício bem limitante. Nem tudo precisa fazer sentido. Nem tudo precisa ter um único sentido. Às vezes só precisamos sentir. Essa é a graça em uma forma de arte tão subjetiva. É isso que faz de "Titane'' uma produção tão oportuna. Uma obra que choca para gerar novos estímulos. Um thriller de horror com uma forte carga dramática que, num movimento ousado, usa o elemento sensorial para tentar acessar a intimidade do público.

É impossível permanecer impassível a títulos como "Titane''. E toda reação a ele é válida. Da repulsa à exaltação. Da raiva ao amor. Da confusão à compreensão. O "imaginativo" longa dirigido por Julia Ducournau assume a estética do absurdo para discutir a perda de controle sobre a máquina humana numa produção que se alimenta da sua dor e também é consumida por ela. Um filme que se recusa a elucidar.

"Titane'' respeita a aura lacônica da sua protagonista, a sexy Alexia (Agathe Rousselle). É assim que Ducournau enxerga a sua protagonista inicialmente. Um pedaço de carne vazio. Um flashback da infância revela a rara condição dela. Em função de um traumático acidente, Alexia possuía uma placa de metal na cabeça. Seria esse o motivo do comportamento da protagonista? Seria essa a justificativa para o seu "amor" por carros?

Não espere respostas em "Titane''. Ducournau provoca ao, a partir de um ato de impulsividade de Alexia, despir a silenciosa personagem da maneira mais imagética possível. A diretora pisa no acelerador numa estrada escura sem medo de derrapar nas curvas de uma obra que ousa em sua forma. É o "choque pelo choque" sem pudor. A cineasta abraça o bizarro determinada tirar o público de uma passiva zona de conforto.

O horror, num primeiro momento, surge para intrigar. Por que Alexia tomou essa decisão? Por que um ato tão extremo? Por que uma paixão tão fulminante? As respostas estão escondidas nas sensações geradas pelas imagens. Ducournau impressiona ao enxergar a ambiguidade no 'body horror'. "Titane" não choca apenas pela sua bizarrice. O impacto, aqui, está naquilo que o cinema extremo de Ducournau pode representar: a violência impressa no "chassi" feminino.

Por trás da brutalidade existe uma trama sobre a perda de controle de uma mulher na sua relação com o sexo, com o corpo, com o futuro, com o presente... Ducournau desafia a nossa compreensão ao atribuir múltiplos sentidos a cada evento experimentado por Alexia. Seria "Titane" uma reflexão sobre o materialismo? Seria uma obra sobre o estrago causado pela ausência paterna? Seria um drama sobre maternidade compulsória? Seria um filme de horror sobre uma mulher reprimida à procura da sua identidade? Seria uma obra sobre a masculinidade como instrumento de defesa feminino? São tantas possibilidades...

O fato é que "Titane" se alimenta da dor para impactar. A angústia de Alexia é reconhecível. As feridas de Alexia são identificáveis. A sensualidade de Alexia expõe a mulher presa numa casca limitante. Ducournau nos obriga a experimentar a dor dela. Ela assume o absurdo para impor um exercício de empatia. É impossível desviar o olhar quando a ferina Agathe Rosselle dança (a cena no corpo de bombeiros é SENSACIONAL). É impossível não sentir algo quando os fluídos corporais de Alexia se confundem com óleo. O sangue feminino é o combustível de uma obra agressiva. É cinema do tipo indigesto. Daquele que divide simplesmente por existir.

O que falta a "Titane'', contudo, é aliar a forma à construção narrativa. No momento em que tenta tornar a sua obra mais palatável, Ducournau investe em soluções que enfraquecem a construção dramática. O arco de Alexia perde força quando a cineasta tira o pé do acelerador para enxergar a luz no fim da estrada. Embora filme a intimidade de Alexia com muito ímpeto visual (os planos fechados/detalhe parecem sempre realçar a fragilidade da protagonista), a realizadora vê a alegoria/sátira/fantasia (entenda como quiser) proposta ser consumida pela busca de uma verdade feminina única e exclusivamente pautada pela dor.

Uma abordagem compreensível, mas que tira de "Titane" a chance de transcender através do absurdo (como bem fez o excelente hit nacional "As Boas Maneiras''). Um filme que, tal qual a sua protagonista, começa e termina prisioneiro da realidade. Do tipo que corrompe até a mais titânica das latarias.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Crítica | Em "A Tragédia de Macbeth", o texto rebuscado de Shakespeare é modernizado pela "agressividade" imagética do cinema de Joel Coen num filme ousado, mas de difícil acesso


O cinema é uma forma de linguagem. E como toda linguagem, está em constante metamorfose. Ao longo da sua curta existência, a Sétima Arte se transformou sutilmente. Pequenas grandes mudanças pautadas pelo aprimoramento tecnológico. Pela interferência criativa através da montagem. Pela fluidez das câmeras no espaço fílmico. Pelo advento do som. Pelo uso das cores. Pela explosão do CGI. O texto cinematográfico ganhou forma a partir do desenvolvimento da imagem. O diretor Joel Coen tem total consciência disso. 

Em "A Tragédia de Macbeth'', o cineasta desafia o espectador ao condensar parte desta metamorfose num único filme. Uma experiência que provoca ao propor uma fusão de linguagens. É o texto teatral filmado com a potência imagética do cinema. É o vigor visual engessado por uma construção narrativa arcaica. 

Eis uma constatação. O texto barroco do século XVI de William Shakespeare rivaliza com a potência imagética de "A tragédia de Macbeth". Tudo o que as imagens de Joel Coen enfatizam com profundidade e uma textura que envolve o público, os rebuscados diálogos diluem em uma obra que assumidamente se aprisiona no passado. O casamento entre o teatral e o cinematográfico, aqui, é instável. A jornada do ambicioso general escocês rumo ao trono é encenada seguindo uma amálgama estilística que nos obriga a comprar a proposta. Não é fácil aceitar a polidez do texto arcaico de Shakespeare num filme com um filtro em preto e branco digital que "grita" modernidade. 

Tal qual o seu Macbeth, Coen encara os fantasmas da sua ambição enquanto cineasta com muita bravura. Reverenciar o texto original torna o filme mais acessível? Não! O realizador, no entanto, abraça esta opção determinado a capturar a natureza da obra. E ela se reflete na brilhante construção visual. Na assombrosa fotografia com uma forte influência do Expressionismo Alemão de Bruno Delbonnel. Na maneira com que o filme invade o vazio dos grandes castelos medievais disposto a focar no choque entre a luz e as trevas. Coen torna o obscuro imagético. Ele ilustra com clareza aquilo que o texto original torna por vezes inacessível. 

É paradoxal constatar que "A Tragédia de Macbeth" se emancipa do texto de William Shakespeare ao exaltar a potência da linguagem cinematográfica. Os monólogos teatrais se tornam protocolares diante daquilo que vemos em tela. Escondido nas convenientes elipses narrativas existe uma obra que fala através dos seus planos. Como se o castelo de Macbeth fosse a mente do protagonista. Como se o p&b refletisse o choque de forças na subjetividade de um homem consumido pela ambição. O texto não rivaliza com as imagens. Ele é engolido por elas.

A linguagem cinematográfica de Joel Coen é agressiva. Ela ofusca. Ela empalidece os momentos mais teatrais. Ela imprime em tela tudo aquilo que o texto diria se fosse atualizado. Ela só não consegue silenciar a força da natureza que é Denzel Washington. O elo que sustenta o litigioso casamento entre o cinema de Coen e o texto de Shakespeare. Ele personifica a tirania da imagem sem sacrificar a humanidade da dramaturgia. Ele atrai a atenção do público quando as escolhas narrativas do realizador ameaçavam gerar a dispersão. Washington é o produto da metamorfose do cinema. Um ator capaz de brilhar nos palcos e também nos sets. É através dele que teatro, cinema e literatura encontram o denominador comum.

O mesmo, porém, não podemos dizer da Lady Macbeth de Francis McDormand. A ferina personagem é diminuída por uma direção que dinamiza as custas da construção de laços. Coen, talvez consciente da forte presença da rainha ardilosa no imaginário do público, resolve tomar algumas liberdades ao torná-la mais falível. O errático roteiro nunca se dedica a estudar a deterioração emocional desta personagem. Coen se contenta com o impacto visual. Com a texturização da insanidade. Ao menos as imagens falam por si só... Essa é a certeza que fica sempre que as mesmerizantes bruxas vividas por uma assombrosa Kathryn Hunter surgem em tela. São nestes momentos em que a experiência fílmica alcança um nível de impacto difícil de ser visto rotineiramente.

"A Tragédia de Macbeth" se apropria do texto literário/teatral para consumi-lo com a voracidade (e a beleza) da imagem fílmica. É épico. É íntimo. É visual. É falho. É cinema.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Crítica | "Benedetta" usa a "profanidade" do cinema para encenar uma sexualizada via crucis feminina disposto a expor o verdadeiro sacrilégio na Igreja dos homens


"Como eu posso saber o que é verdadeiro ou falso", pergunta a relutante freira Benedetta diante de visões que ela julgava ser uma manifestação divina. "Só através do sofrimento você verá Cristo", responde o padre confessor sugerindo o sacrifício como a única forma de alcançar o sagrado. Assim, através da exploração da carne, a Igreja Católica se colocou no poder na Idade Média. Uma era de trevas. De violência, opressão e morte. Assim, "milagres" foram criados e milagres foram silenciados.

Em "Benedetta', Paul Verhoeven não parece interessado neste segundo grupo. No verdadeiro mistério da fé. As suas intenções são mais provocantes. Ele usa a exploração da carne seguindo a lógica "sagrada" da Igreja e a "profana"' do Cinema numa obra que encena a sua sexualizada visão de via crucis feminina para desnudar os eventuais sacrilégios escondidos nos "milagres" fabricados por uma instituição corrupta. É o evangelho evangelho farsesco segundo o Paul Verhoeven.

Com a sua visão de cinema pautada pelo choque, o realizador entalha a realidade de muitas na imagem fílmica disposto a macular símbolos sagrados para expor a insanidade na religião dos homens. O realizador não parece crer nos milagres da autoproclamada Santa Benedetta. Sempre que invade a subjetividade desta jovem freira, Verhoeven o faz através da sátira. Ele usa o absurdo para expor a visão de mundo de alguém que cresceu prometida à Igreja. De uma "esposa de Jesus". A ironia sugere a descrença. A envolvente construção narrativa aponta as certezas.

Verhoeven crê na mulher Benedetta. Ele se encanta pela força de alguém capaz de manipular (será?) as regras do jogo para se emancipar. Com um texto deliciosamente ambíguo, o diretor não se cega para outras possibilidades. A provocação, num primeiro momento, nasce da visão farsesca de Idade Média proposta. Tudo parece limpo demais. Tudo parece idealizado demais. Tudo parece miraculoso demais. Uma encenação propositalmente exagerada que dialoga com a natureza extrema da protagonista.

Benedetta é uma personagem fascinante. Ela é o feminino fundido ao masculino. O produto de um meio repressor. Ela é, também, uma figura maquiavélica elevada pelo texto irônico de Verhoeven. Quando uma jovem vítima de abusos (Daphne Patakia) entra para o convento através de um gesto de bondade seu, Benedetta vê o amor por Jesus se transformar em paixão. Do tipo que traz novas "cores" às suas visões.

É revigorante notar como o longa usa a relação de Benedetta com a fé para expor a intimidade de uma jovem culpada por seus sentimentos. A excitação gerada por um novo laço de intimidade física leva a projeções que se confundem com a realidade. Verhoeven está menos interessado na veracidade das manifestações de santidade da protagonista e mais focado na natureza das emoções dela. O que é verdadeiro? O que é falso? O diretor nos deixa em dúvidas ao sugerir tanto a fragilidade de uma mente cega pela fé, quanto a inteligência de uma jovem determinada a usar as suas convicções para ascender numa estrutura social patriarcal.

Se a Igreja Católica explorava a carne através do sofrimento, do martírio e do autoflagelo, Verhoeven "explora" o corpo feminino através do fetiche, do sexo e do prazer. Um "pecado" consentido pela realidade do cinema. "Benedetta" desnuda para acessar a intimidade. O diretor profana o sagrado com o intuito de escancarar o vazio de signos que deixam de fazer sentido diante da corrupção da fé. Não é o amor entre duas mulheres que representa o sacrilégio aqui. O questionável ideal de pureza casta é consumido pela alienação, pelo fanatismo, pela submissão.

É a "peste" dos homens que viola o sacro. É o venal duelo de forças num meio regido por códigos ilusoriamente santos que consome o milagre. Dentro do contexto proposto, Benedetta encontra na figura da madre superiora vivida por uma intensa Charlotte Rampling uma rival nutrida pelo mesmo sentimento. Ambas queriam estar mais próximas do masculino. Benedetta de um Jesus Cristo heroico e feminino. Felicita da abusiva alta cúpula da Igreja Católica.

Verhoeven encena a sua versão de via crucis para atacar a farsa de uma Igreja Católica santa. Uma entidade mundana sustentada pelo sofrimento alheio. O cenário sociopolítico, a explosão da peste negra na Europa, só ajuda a expor uma instituição desumana, desigual e desvirtuada. À essa altura, Benedetta não é mais sobre o sagrado. Ao duvidar do milagre, Verhoeven não ataca a fé de uma mulher. Ele questiona o poder daqueles que julgavam em nome de Deus. Homens pequenos desafiados por uma freira que acreditava no sagrado e que praticava o amor seguindo as suas próprias (e distorcidas) regras.

Uma crítica potente que só não ganha ecos mais profundos devido ao viés fetichista adotado por Verhoeven. O problema, na verdade, não está diretamente ligado ao foco no prazer feminino. Isso não é um pecado mortal. O que frustra é ver como, na busca pelo choque através do sexo, o realizador se afasta da subjetividade de Benedetta. Suas peculiares visões são repentinamente abandonadas. Todo o processo de "masculinização" da protagonista é pautado na relação dela com o poder. O romance com a radiante Bartolomea parece servir apenas ao estudo sobre o prazer culposo num retrógrado meio religioso.

Um retrato "egoísta'' atenuado pela magistral performance de Virginie Efira. É assustador notar como ela vai da doçura à ferocidade com um senso de teatralização convincente que casa com a farsa proposta por Verhoeven. A atriz exagera sem sacrificar as nuances mais íntimas do texto. O seu trabalho de voz, em especial, é brilhante. Uma performance que urge consciente da vulnerabilidade da personagem-título. Um predicado valorizado pela sagacidade com que Verhoeven, de forma totalmente intuitiva, exalta a inteligência da protagonista. O realizador envolve ao estabelecer o instinto de sobrevivência da freira. Em tempos de pandemia no século XV, Benedetta já era favorável ao isolamento social…

Só mesmo um diretor como Paul Verhoeven, em dias de tamanha sensibilidade, tiraria um filme desafiador como "Benedetta" do papel. Um verdadeiro milagre cinematográfico.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Crítica | Com um olhar subjetivo para a angústia feminina, "A Filha Perdida" invade a intimidade de uma mulher atormentada pelo fantasma da maternidade


A maternidade tóxica é um tema tabu na realidade do cinema mainstream. O que, por si só, reflete uma lógica patriarcal acostumada a idealizar a figura da mãe. As exceções da regra, quase sempre, surgem em obras carregadas de julgamento. Títulos que preferem culpar a estudar os efeitos da culpa. Em "A Filha Perdida'', Maggie Gyllenhaal não quer julgar ninguém. No seu longa de estreia na direção, a eclética atriz enxerga o terror na impotência feminina num filme em que a maternidade surge como uma maldição e as crianças como fantasmas de um tempo consumido por um rótulo repressivo.

A partir de um recorte intuitivo (os flashbacks se fundem a trama gradativamente imprimindo a dor de uma mulher confrontada por suas decisões), a cineasta usa as féias de uma professora, a errática Leda (Olivia Colman), como o ponto de partida para um retrato subjetivo sobre um lado pouco convidativo da maternidade. Naquele cenário paradisíaco, quando a protagonista deixa de ser definida por aquilo que ela decidiu prezar (a sua profissão), Gyllenhaal mergulha na psique de uma mulher ferida por uma culpa que brota do silêncio. Ou melhor, do vazio interrompido por uma ruidosa família de turistas americanos.

O gatilho são as memórias. Ver uma jovem mãe, a esgotada Nina (Dakota Johnson, dedicada ao valorizar o desespero escondido numa bela "casca" jovial), cuidando da sua filha resgata velhos fantasmas reprimidos pela vida que Leda escolheu levar. É fascinante ver como o roteiro assinado pela diretora, baseado no elogiado best-seller de Elena Ferrante, une as personagens numa teia invisível que logo se torna palpável. É um círculo vicioso que cruza gerações. O simples reconhecimento gera uma relação que ganha nuances complexas à medida que o passado se torna mais vivo para Leda.

Absorvida por uma realidade que já foi a sua, a protagonista sucumbe às lembranças de um tempo tomado por um amor que intoxica. Os flashbacks protagonizados por Jessie Buckley invadem a tela como pensamentos intrusivos para revelar o que machucava Leda. A imposição gerada pelo meio. O esgotamento gerado pelos filhos. A frustração sexual. A desvalorização profissional.

Gyllenhaal pinta um retrato complexo que não se incomoda em soar indigesto. Uma visão crua sobre a maternidade que envolve a trama como um abraço que desconforta. A angústia feminina leva a atos impulsivos. Uma boneca. Um objeto tão banal se torna um instrumento para a construção de uma imagética metáfora sobre a maternidade compulsória. Sobre um círculo vicioso trabalhado desde a primeira infância. É a boneca tal filha perdida. É ela o símbolo de uma formação que idealiza a maternidade desde cedo sem sequer estudar as sequelas deste processo.

Gyllenhaal invade o vazio de Leda determinada a ouvir aquilo que não era dito, a capturar os sentimentos escondidos por um sorriso, a estudar a dor gerada por uma imposição. "A Filha Perdida" exige identificação por parte do público. A diretora nos desafia a sentir. Ela nos obriga a encarar uma realidade ofuscada por um senso comum que aprisiona o feminino. O desconforto está impresso não só na natureza temática do plot, como na forma indiscreta com que Gyllenhaal rompe a intimidade de Leda. Sua câmera na mão não respeita a privacidade. Seus enquadramentos sufocam.

Nos momentos em que se distancia da perspectiva de Leda, contudo, Maggie Gyllenhaal se perde no labirinto de emoções proposto. A relação da protagonista com a detestável fauna de turistas surge como um dispersivo agente facilitador. A realizadora usa esta presença "ameaçadora'' para verbalizar confissões até então brilhantemente expostas nas entrelinhas. A ausência masculina, embora sugestiva, revela a falta de foco de um roteiro em crise de confiança. A tensão envolvendo um subplot descartável surpassagema concessão.

Uma abordagem narrativamente nauseante que encontra o equilíbrio em Olivia Colman. Uma atriz que diz tudo sem precisar falar nada. Ela carrega na sua presença a culpa imposta e a autoimposta. Ela desafia a direção invasiva de Gyllenhaal ao lutar contra os fantasmas de um passado que ainda machucava. Colman entende Leda. Gyllenhaal não julga Leda. Você está aberto a sentir por Leda? Em "A Filha Perdida'' a maternidade surge como um amor que envenena. É a idealização que consome. É uma felicidade passageira.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Em "A Mão de Deus", Paolo Sorrentino faz as pazes com o passado num filme sobre o vazio preenchido com a arte


A realidade no cinema é uma entidade com múltiplas faces. A Sétima Arte permite que o real ganhe contornos estilizados. A Sétima Arte permite também que o real ganhe a tela em sua forma mais brutal. A realidade pode se manifestar através do surrealismo, do onirismo, do absurdo... Em "A Mão de Deus'', a realidade assume uma face idealizada. O que nós vemos são fatos. São uma dolorosa parte da vida do cineasta Paolo Sorrentino. O jovem, contudo, se tornou experiente. O garoto de 17 anos torcedor do Napoli e apaixonado por Maradona se tornou um cineasta. No seu mais novo (e pessoal projeto), Sorrentino usa a sua arte para recuperar, ao menos na realidade do cinema, o "controle" sobre o capítulo mais duro da sua história.


Através da linguagem cinematográfica, ele resolve regressar ao passado. A tristeza deu lugar ao saudosismo. A dor das experiências vividas o desafiou a recriar. "A Mão de Deus'' é um filme sobre o vazio ocupado pelas memórias, pela nostalgia e as lacunas nunca mais preenchidas. O diretor flerta com as convenções dos 'coming of age movies' disposta a usar o seu alter-ego, o curioso jovem Fabietto (Filippo Scotti), como uma ponte para o estudo da formação não só de um homem, mas de um artista. Sorrentino revisita o seu passado disposto a exaltar a imperfeição, a disfuncionalidade de uma família reconhecível, as curvas (de todos os tipos) das esculturais mulheres que cruzaram a sua adolescência. Ou seja, as peculiaridades de uma juventude feliz.

Quando olha para trás, Sorrentino enxerga o frescor da sua amada Nápoles. Quando olha para trás, Sorrentino acessa as suas emoções mais pessoais com a intenção de revelar aqueles que ajudaram a construir a sua visão de mundo. O diretor não emula Federico Fellini por pretensão artística. Tampouco por uma simples homenagem. Ali estava alguém cansado da realidade dos fatos. Em "The Hand of God" (no original), Sorrentino se desarma à medida que extravasa a sua intimidade em cena. A nostalgia preenche o vazio deixado por um verão em família.

É revigorante ver como o cineasta adota o exagero determinado não a satirizar, mas a rir/admirar (d)aquilo que talvez o jovem Paolo não tenha conseguido. O roteiro não titubeia em caçoar de algumas das personagens mais marcantes da sua vida. A intenção, porém, não é a ofensa. O olhar de Sorrentino está na sua família enquanto um apaixonante instrumento de inspiração. "Você já é a minha musa", diz o jovem protagonista para a sua exuberante tia, uma presença feminina voluptuosa típica do cinema italiano de Sophia Loren. Será que o jovem Paolo chegou a manifestar tão diretamente essa "admiração"? Será que ele teve essa coragem? Nunca saberemos...

Sempre que desnuda (às vezes literalmente) essa magnífica personagem, o diretor foca no efeito dela sob o protagonista. Um fascínio que vai além da atração sexual. O mesmo vale para o tio passional sempre muito pessimista, a matriarca senil que não titubeava em desferir ofensas, a vizinha baronesa que experimentava a sua própria versão da nobreza decadente. O que nós vemos em tela é a realidade do jovem Paolo, ou a realidade do cinema de Paolo Sorrentino? Eu diria que se trata de uma mistura. Um círculo virtuoso.

Em "A Mão de Deus'', essas figuras se revelam um combustível para o artista. Embora o foco esteja na jornada de amadurecimento de Fabietto (encarado com uma pureza verdadeira por Filippo Scotti), Sorrentino revisita o passado com a intenção de expor as suas raízes enquanto cineasta. Seus pais, sob essa perspectiva, talvez sejam o símbolo maior da sua verve criativa. Maria (Teresa Saponangelo, radiante), a mãe, não perde a oportunidade de pregar peças nos amigos. Um senso de humor extravagante típico na filmografia de Sorrentino. Do pai, por sua vez, o expansivo Saverio (Toni Servillo, monumental), vem a energia luminosa/ambígua que acompanha os seus principais projetos. Por trás do amor entre os dois existiam segredos estudados com um olhar agora compreensivo de quem sabe que a idealização só é possível na realidade do cinema.

Sorrentino se abre aos olhos do público através da história dos seus. Com a sua usual sutileza, o diretor condensa as emoções em passagens muito pessoais. Ele se seduz pelas falhas, mas zela pelos sentimentos mais privados. O que fica claro, em especial, na fantástica cena do colégio. Ali, quando a brincadeira perde sentido, Fabietto chora. A câmera de Sorrentino respeita o espaço dele.

Quatro décadas depois, a volta ao passado é ainda dolorosa. Um sentimento que fica evidente nas passagens mais sóbrias. Sempre que rompe com a estética exuberante, "A Mão de Deus'' perde vigor. Uma ruptura ora calculada, ora involuntária que diz muito. Nestes momentos notamos a presença dos fantasmas habitantes do tal vazio nunca preenchido. O elemento sensorial que permeia toda a trama, aqui, ganha um caráter ainda mais imersivo. A beleza de "A Mão de Deus" não está somente no belo. Na Nápoles ensolarada retratada com extremo vigor pela fotografia de Daria D'Antonio. Nas curvas da estonteante atriz Luisa Ranieri. No calor humano que surge como um elo invisível brilhantemente trabalhado pelo roteiro\montagem.

O belo também está no imperfeito (não à toa Maradona surge como um símbolo), na ausência, no som seco de um caixão sendo lacrado, no silêncio de uma Itália melancólica. Essa é a poesia da vida. Ao entender que estes momentos são parte da sua formação enquanto homem/cineasta, Sorrentino parece se reconciliar com a sua infância. Em "A Mão de Deus'', nostalgia e onirismo se confundem num drama com cores quentes, personagens calorosos e uma visão acolhedora sobre a dura missão que é amadurecer.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Crítica | "Duna" sugere grandeza, mas revela o vazio num épico aborrecido projetado para alimentar expectativas


"Isso é apenas o começo". "Duna" é um filme triste. Aborrecido. Uma obra incompleta que sugere grandeza, mas revela o vazio. A auto explicativa frase final do épico dirigido por Denis Villeneuve sugere a aflição em torno de um projeto que nasceu sem a certeza de que teria um fim. Quando a "ausente" personagem da estrela Zendaya surge com a sentença que abre este texto, o que nós vemos é uma tentativa de persuasão. Uma voz não tão poderosa como as das Bene Gesserit, mas convidativa. Isso é inegável. O cineasta canadense sabe como trabalhar as promessas aqui.

O design de produção adapta a rica construção de mundo da obra do escritor Frank Herbert com potência. O texto solene sugere um drama palaciano envolvendo barões tiranos, duques justos e um regente pressionado por ser o escolhido. "Duna" é cinema em grande escala pensado para espantar. Só pensado… O que vemos é uma produção sisuda incapaz de se maravilhar pelo rico universo construído.

"Duna" (o filme) é um "Star Wars" sem graça. Um filme escuro sobre um contexto nebuloso. Villeneuve se perde entre adaptar a verve sócio-política do texto original e realçar a estética do absurdo tão bem trabalhada por David Lynch dentro da confusa versão oitentista. Chega a ser digno de pena ver o realizador emulando "Apocalipse Now" sempre que o duque Vladimir Harkonnen surge em tela. Esse é o nível de pretensão de Villeneuve. Ele dedica tudo aos detalhes e pouco ao todo.

O choque entre forças desiguais no deserto de Arrakis (numa clara referência à relação de exploração petrolífera entre os EUA e o Oriente Médio) é apenas introduzido, mas nunca aprofundado. O background religioso envolvendo a possível revelação de um messias é tratado com um senso de literalidade que frustra. Sempre de forma lacônica, Villeneuve usa e abusa dos flashfoward para sugerir possibilidades que só virão a ser desenvolvidas (será?) nos projetos futuros. Embora menos caótico do que a versão oitentista, o roteiro assinado pelo próprio diretor, ao lado de Jon Spaiths e Eric Roth, condensa tanto algumas situações que acaba por tornar tudo descartável. Uma palavra incompatível com o universo Duna.

O pior deste ambicioso projeto, de longe, está no péssimo desenvolvimento de personagens. Villeneuve não consegue costurar laços. Ele aposta tudo na presença do elenco. Na aura soturna impressa por Stellan Skarsgard como o sinistro Barão Harkonnen. Na energia 'bad-ass' defendida com entusiasmo por Jason Momoa como o leal guardião Duncan Idaho. Na integridade expressa por Oscar Isaac como o nobre Duque Atreides. Os personagens são aquilo que representam. Maldade, valentia, nobreza, chatice...

É particularmente decepcionante ver como o texto é relapso ao costurar a promissora relação entre Jessica e Paul Atreides. Se por um lado é revigorante notar como o novo "Duna" empodera a complexa matriarca (Rebecca Ferguson se agiganta em cena), por outro é incômodo enxergar o vazio na relação entre mãe e filho. Existe uma energia estranha nessa dinâmica. Uma tensão que Villeneuve em momento algum se dedica a estudar. "A culpa é sua!", brada Paul contra a mãe numa cena aleatória que deveria dizer muito, mas não revela nada

Uma sensação de descontrole narrativo que se reflete diretamente na figura do protagonista. A maneira com que Villeneuve enxerga a fragilidade de Paul é tão errática quanto a performance de Timothée Chalamet. Em momento algum nós acessamos a verdade deste personagem. "Duna'', à rigor, é um filme sobre as dúvidas de um jovem. O foco está na insegurança do tal escolhido. O cineasta, contudo, se seduz pela imponência do nobre superprotegido. Uma visão antipática que ajuda a definir a obra

Nem as virtudes estéticas vendidas no lançamento se revelam tão virtuosas assim. Villeneuve confunde o sombrio com o sem vida. É conveniente ver como, em passagens como a sequência do ataque ao clã Atreides (uma cena poderia atenuar o marasmo rítmico), o diretor usa a escuridão para diminuir o escopo da ação. A intenção era sugerir gravidade. Na prática, porém, o que vemos é um corre corre genérico no nível de qualquer blockbuster ruim. Tudo é muito confuso, rápido e genérico. Um filme épico que não preza pelas estratégias. Até as sequências de luta mais "íntimas" são podadas por uma direção incapaz de extrair a plasticidade da violência. Sabe quando "Duna" é de fato grande.

Quando a fantástica trilha sonora de Hans Zimmer embala a estonteante fotografia desértica de Greig Fraser. É empolgante ver como o compositor funde os sons das gaitas de fole típicas da Idade Média com os vocalizados cânticos do Oriente Médio numa mistura pesada que casa com a natureza política do plot. Um conceito que Villeneuve, pelo menos nessa primeira parte, não se dedica a explorar. "Duna" é um filme incompleto. "Duna" é uma experiência cinematográfica oca que se sustenta na expectativa do que está por vir. Um filme cuja maior ousadia está na realização do mesmo e não em qualquer virtude narrativa/estética/ técnica/artística. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Crítica | Um filme de horror diet, "A Lenda de Candyman" se omite enquanto cinema de gênero para construir uma crítica social 'gostável'



Um filme de horror pode ser pensado para ser "gostável''? Eis uma pergunta difícil de ser respondida. À rigor, o gênero nasceu da provocação. Do choque criado a partir da "profanação" de signos estimados. O terror, como nenhum outro gênero, tem o poder de desafiar o público a partir de reações instintivas. O medo enquanto instrumento de reflexão. "O Mistério de Candyman", o original de 1993, entendeu isso como poucos. O fantástico hit noventista dirigido por Bernard Rose ressignificou a banalização da violência dos 'slashers movies' na tentativa de expor as sequelas do racismo na rotina do afro-americano.

O mal, aqui, ganhou um uma conotação reativa. Candyman era o ódio em estado puro. Candyman era o espírito de uma comunidade devastada pelo vício, pela exploração e pela violência. O vilão era um sintoma. Uma lenda criada para afugentar. Uma defesa do inconsciente. Um conceito brilhante aplicado num thriller de horror forte, pesado e provocante. O tipo de ousadia que falta a sua continuação/remake, o confuso "A Lenda de Candyman''. Existe uma série de ótimas ideias no bagunçado longa da diretora Nia da Costa. A maioria delas, contudo, se perde numa obra determinada a reescrever o passado, mas incapaz de se emancipar dele.

O problema, na verdade, não está na maneira (criativa, por sinal) com que o roteiro assinado pela própria diretora, ao lado de Jordan Peele e Win Rosenfeld, se apropria da mitologia original determinado a enxergar os fatos sob uma nova perspectiva. O protagonismo branco ficou no passado. O choque não está associado à miséria exposta a partir do olhar do 'white savior' (um conceito brilhantemente subvertido no original).

Em "A Lenda de Candyman'', a cineasta desafia a estética gótica "suja" do original ao defender o empoderamento através da imagem. Esqueça a marginalização da dor do afro-americano. Nia da Costa enxerga as conquistas da comunidade a partir dos seus protagonistas, o artista plástico Anthony (Yahya Abdul-Mateen II) e a curadora de arte Brianna (Teyonah Parris). Eles são o rosto de uma América progressista. Eles são o presente.

Uma realidade que o longa se orgulha em expor. A expressiva direção de arte assume a linguagem modernista estabelecida pelo plot ao imprimir o sucesso do casal em tela. A realizadora usa a arte para questionar aqueles que visavam lucrar com o sofrimento negro. Uma lógica que, durante muito tempo, vigorou em Hollywood. O que ajufa a explicar as escolhas do longa. "A Lenda de Candyman" quer defender o novo. "A Lenda de Candyman" exalta o empoderamento num meio ainda racista. "A Lenda de Candyman" se esforça para dialogar com uma agenda racial importante. Uma abordagem representativa "gostável" que poderia ter sido o diferencial da obra.

Para justificar essa visão de continuação, no entanto, Nia da Costa sacrifica o único elemento do longa original que não poderia ser descaracterizado: a realidade. Na ânsia de expandir a mitologia em torno da lenda (reescrita em transições lúdicas), a realizadora perde o foco numa tentativa superficial de retratar um século de violência contra os afro-americanos. Os condomínios habitacionais de outrora viraram prédios modernos num bairro gentrificado. Do alto destes condomínios de luxo, contudo, "A Lenda de Candyman" não consegue ouvir o grito de revolta de muitos.

O que começa de maneira interessante, com um estudo sobre a obsessão de um artista sem raízes disposto a tudo para emplacar um sucesso, logo descamba para uma série de soluções rocambolescas envolvendo versões alternativas de Candyman e uma visão literal sobre os obstáculos impostos por um meio racista. Um abordagem que não difere em nada da proposta pelo original.

Anthony, ao contrário da pesquisadora Helen (Virgínia Madsen), é um personagem oco. O roteiro, para proteger o irrelevante plot twist, impede que conheçamos o passado do protagonista. A obsessão dele pela figura de Candyman diz mais sobre a inconsequência do artista vaidoso, do que sobre o tormento de uma comunidade. Uma escolha conveniente. Sempre que se vê obrigada a romper com a estética 'clean' proposta, Nia da Costa apela para flashbacks expositivos que entram em contradição com o tom empoderador defendido. A dor da comunidade é explorada apenas como um alicerce narrativo. 

O que ecoa, até mesmo, no impactante clímax, um desfecho provocador que se revela vazio devido a opção do longa em não trazer a investigação policial envolvendo uma série de misteriosos assassinatos para o centro da equação. "A Lenda de Candyman" é, em suma, uma crônica social falha. O pior, no entanto, está na maneira relapsa com que a diretora explora o cinema de gênero. O horror surge quase sempre em segundo plano. Como se Nia da Costa, de alguma forma, tentasse proteger a figura de Candyman.

A sequência do ataque no banheiro de uma escola, em especial, é de uma omissão que constrange. Esqueça a tensão do original. Esqueça (ou não?) o Candyman imponente e agressivo de Tony Todd. O que vemos aqui é um vilão diet que não gera medo, nem repulsa, nem ameaça. Apenas pena. Um sentimento que seria válido se o roteiro mergulhasse, de fato, na angústia de uma comunidade através dele. O que nós assistimos, porém, é uma construção narrativa focada na deterioração de um artista negro consumido por uma realidade que o texto reluta em abordar.

É através da imagem, mais uma vez, que Nia da Costa melhor captura a corrosão do protagonista num contexto racista. A cineasta faz um brilhante uso do 'body horror' para traduzir a degradação de Anthony na busca por respostas que o conduzam ao seu passado. Impulsionado pelo fantástico trabalho da equipe de maquiagem (a decrepitude estabelecida pelo longa causa um efeito genuinamente asqueroso), Yahya Abdul-Mateen II se esforça para imprimir em tela o peso que falta ao roteiro, mas não consegue se sobressair diante de uma obra com pretensões tão erráticas.

Com um senso de terror implícito e uma estrutura narrativa presa ao longa original, "A Lenda de Candyman" caminha em círculos com ambições modernizantes para, só no fim, entender que a dor causadora do horror estava ligada ao passado. Não a obsessão de um artista desconectado da realidade, tampouco a uma (frustrante) mitologia fantasiosa, mas ao ódio puro personificado na vítima da brutalidade gerada pela injustiça racial.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Crítica | Com um olhar revelador para a brutalidade do cowboy, "Ataque dos Cães" traz o western para o século XXI num drama enfático repleto de sutilezas


Não é exagero afirmar que o Western se construiu a partir da exaltação da imperfeição masculina. O cowboy idealizado por ícones como John Ford e John Wayne trazia consigo características que um homem precisava ter para "sobreviver" num cenário regido pela lei do mais forte. Uma lógica máscula típica de uma deformada estrutura desigual. O meio, por si só, explicava os desvios destes "heróis". Ao longo dos anos, contudo, o gênero relutou em olhar para o contexto. O faroeste consagrou mitos, mas custou a os humanizar. O foco, durante muito tempo, ficou no efeito gerado pelo indivíduo. No masculino como parte (causadora) do problema. Um olhar muito direcionado para os desvios de ordem social (machismo, racismo, sexismo). E a angústia do homem?

Nos últimos anos, porém, temos assistido a uma mudança nesta visão sobre o gênero. O feminino requisitou o seu lugar de fala no faroeste com disposição para reescrever o passado. Para desafiar velhos arquétipos. Para contestar o comportamento até então exaltado pelo gênero. Uma nova perspectiva que alcança o seu ápice em "Ataque dos Cães''. Com um olhar íntimo para o meio enquanto agente deformador, o potente longa de Jane Campion mergulha no Western determinado a usar o árido cenário para ressignificar as imperfeições masculinas dos esgotados caubóis.

Phil, vivido por um assombroso Benedict Cumberbatch, surge à princípio trazendo as características do herói que o segmento ajudou a construir. O típico vaqueiro respeitado pelos seus, que contava histórias de um passado glorioso e não titubeava em manifestar a sua força sempre que preciso. Dividido em cinco mini atos que se correlacionam a partir das dúvidas que surgem pelo caminho, o roteiro assinado pela própria diretora, baseado no livro de Thomas Savage, começa seguindo uma lógica bem tradicional. Temos dois Irmãos, o indômito Phil (Cumberbatch) e o racional George (Jesse Plemons, soberbo), uma "missão", uma relação de temor e confiança entre o masculino. Campion, no entanto, se recusa a estudar os personagens a partir dos feitos do cowboy idealizado. É no cenário que ela busca respostas. O velho Oeste é o vilão unidimensional da vez aqui.

A cineasta usa o contexto para acessar a intimidade destes homens e expor a verdade por trás da casca criada. Em "Ataque dos Cães'', o protagonismo é sabiamente diluído à serviço de uma visão provocante sobre o todo. Antes de tentar entender o amargor de Phil, a introspecção cosmopolita de George e a deterioração de Rose (Kirsten Dunst, marcante), Campion se preocupa em estabelecer as regras de um meio tóxico para investigar o efeito delas sobre os protagonistas. É fascinante ver como a diretora, num retrato enfático carregado de sutilezas, captura os detalhes que o gênero nunca deu a devida atenção.

"O que você vê quando olha para aquela montanha?", diz Phil sugerindo algo que deveria ser fácil de enxergar, mas que poucos conseguiam ver. Essa pergunta é um convite à reflexão. Por trás dos contrastes criados pela bucólica fotografia em tons dourados de Ari Wegner existe um drama sobre espaços não preenchidos. Sobre insinuações reveladoras. Sobre imagens sugestivas reinterpretadas a partir deste novo olhar. O vazio cênico é tão evidente quanto a distorção afetiva dos personagens. A realizadora molda o micro a partir do macro. Quanto mais conhecemos o contexto, mais sentimos pelos protagonistas. A brutalidade de Phil esconde algo. A polidez de George sugere algo. A impotência nauseante de Rose ilustra algo.

É na intuitiva busca pelos porquês que "Ataque dos Cães" desafia o status quo do segmento. Os protagonistas gritam silenciosamente. Se impõem discretamente. Chamar a atenção parece perigoso. Numa das sequências mais expressivas do longa, Phil, num gesto passivo-agressivo, silencia a sua nora usando a música para envergonhá-la. Ele não podia parecer mais fraco que ninguém. Cada gesto, dos afetuosos aos mais odiosos, tem algo a revelar sobre a identidade dos protagonistas. A hostilidade gratuita do cowboy para com o seu sobrinho, o deslocado Peter (Kodi Smit-McPhee, ótimo), esconde a identificação. A relação tóxica entre irmão e cunhada, por outro lado, escondia a angústia de um homem sozinho. Um tipo que renega a civilização. Porque aquele homem tão aparentemente forte tinha medo? Eis a questão que redimensiona "Ataque dos Cães".

A partir do olhar curioso daquele que representa o futuro no cenário proposto, Campion investiga os segredos de um homem calejado para sobreviver. Benedict Cumberbatch, na atuação da sua vida, absorve a brutalidade do velho Oeste numa performance áspera repleta de sutilezas. Os seus detestáveis atos de força dizem tanto quanto os seus comoventes lampejos de fraqueza. Cumberbatch ajuda a demolir uma casca que durante muito tempo aprisionou os heróis do faroeste. Ele é o retrocesso em pessoa. Ele se isola para pertencer. Ele é apenas um refém da sua natureza.

Ao entender isso, Campion humaniza a figura do cowboy mítico num retrato sobre a brutalidade enquanto um repressivo instrumento de defesa. Tudo, no fim, segue girando em torno de temas caros dentro do Western. "Ataque dos Cães" é sobre a SOBREVIVÊNCIA sustentada na base da deformação. É sobre o DESEJO canalizado na agressividade. É sobre a LIBERDADE consumida por imposições tóxicas. É sobre um FUTURO construído não na base do laço, mas na força da afirmação. O faroeste finalmente chegou ao século XXI.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Crítica | Uma obra imune à rótulos, "Annette" cria a partir de obviedades numa experiência audiovisual que provoca na base da originalidade


Uma raridade em tempos de pouca criatividade no cinema mundial, "Annette" é a prova que não existe lugar-comum para um realizador autoral. É fascinante ver as escolhas que o diretor Leos Carax faz para tornar o musical estrelado por Adam Driver e Marion Cotillard uma das experiências cinematográficas mais originais dos últimos anos. O cineasta francês não ousa na forma, tampouco no conteúdo. O que impressiona, aqui, é ver a capacidade de Carax ao criar a partir de obviedades. De metáforas autoexplicativas interpretadas com um senso poético capaz de potencializar uma crônica tragicômica sobre a toxicidade no showbiz.

Não existe um segundo de loucura em "Annette". Por trás das excêntricas escolhas narrativas estabelecidas ao longo das vigorosas 2 h e 20 min de projeção está um realizador determinado a extrair algo novo dos clichês. Considerado por muitos um diretor "fora da caixinha'', Carax resolve desafiar este limitante rótulo numa obra que provoca ao entregar aquilo que esperávamos ver de maneira absolutamente singular. Um filme palatável, mas indômito. Antecipável, mas surpreendente.

No papel, "Annette" parte de um lugar-comum. Estamos diante de mais um filme sobre um casal de estrelas, o ácido comediante Henry (Driver) e a doce cantora de ópera Ann (Cotillard), consumido pelos altos e baixos gerados pelas imposições da indústria do entretenimento. Ele ofendia com o seu humor cínico e pretensioso. Ela acalentava com o seu canto belo e gracioso. Os opostos definitivamente se atraem. Eis o primeiro clichê de "Annette". Carax, contudo, não parece dedicado ao amor dos protagonistas. O olhar do cineasta recai justamente para as diferenças entre eles. Para o silêncio que precede a tempestade.

A paixão que move os dois tem um quê melancólico. O diretor se seduz pelo potencial problema escondido na aparente funcionalidade. A intimidade é abreviada pela superexposição. A encenação torna tudo mais ambíguo. O que é piada? O que é marketing? O que é real? Carax, em mais uma opção para tornar a sua obra "acessível", assume a linguagem sensacionalista dos tabloides para construir esta relação a partir da reação midiática. O que logo se revela uma provocação. Ele usa um meio pouco confiável (mas popular) para expor os personagens. 

A verdade, no entanto, surge mesmo no canto. O cineasta usa a beleza da música para expor a natureza dos personagens. Ele usa o audiovisual para expor a realidade de um meio tóxico. Uma visão poética e ao mesmo tempo realística que dita o curso da trama. "Annette" é sobre o feminino, mas não é sobre a maternidade. É estimulante notar como o realizador testa as nossas expectativas ao construir um filme musical em que a voz da única cantora é um mero alicerce narrativo. O que pode ser bem frustrante para muitos. Marion Cotillard, definitivamente, merecia mais tempo de tela. A sua Ann merecia ter os seus conflitos íntimos estudados.

Embora incomode num primeiro momento, esta opção começa a fazer sentido quando percebemos o real objeto de estudo do cineasta. A voz dela é a pureza. A voz dele é a fraqueza. Deste choque de forças, surge Annette. A filha de um relacionamento frágil. A filha de um homem desequilibrado. A filha de um meio consumido. Tudo o que diz respeito à pequena personagem-título é simplesmente genial. Nunca um parto foi tão musical. Nunca uma solução visual autoexplicativa foi tão original. A beleza da metáfora, no fim, está na sua compreensão.

Em "Annette", o óbvio se torna poético graças à simplicidade criativa com que Carax interpreta os signos propostos. A natureza lúdica pensada pelo cineasta contrasta com o tom sujo e ambíguo da premissa. Um filme sobre alcoolismo, sobre violência doméstica, sobre exploração do showbiz, sobre o efeito da decadência na identidade de uma celebridade. Enquanto Ann representa a arte em sua face mais transcendental, Henry representa o status conseguido através da fama. Algo facilmente corruptível. A partir dos revigorantes acordes da banda Sparks, Carax canta a distorção. Canta a corrupção da pureza. Canta o abandono infantil. Canta a derrocada masculina.

A pequena Annette é um "fantoche" num meio midiático. A obviedade, mais uma vez, é redimensionada devida a maneira ácida com que o diretor explora uma solução visual provocante. O flerte com a fantasia, aqui, permite que o longa foque menos no sofrimento da criança e mais na negligência do pai. É o absurdo à serviço de um texto mordaz. Carax associa Henry ao pior do seu mundo. O diretor, entretanto, rompe mais uma vez com os clichês ao nunca reduzir a vilania ao masculino. A mira dele se volta para o contexto que deforma indivíduos.

Não à toa, o maestro vivido por um expressivo Simon Helberg surge como um interessante (mas subaproveitado) contraponto à figura do pai. O virtuoso acolhe. O desvirtuado se afasta. Henry é a ambição. Henry é a angústia de alguém prestes a ser descartado. Quando o personagem vivido por um impressionante Adam Driver canta, nós logo percebemos a sua fragilidade. O ator esconde na imponência física de um tipo polêmico o peso do tormento de um artista que se perdeu pelo caminho.

"Annette" não quer julgar. "Annette" também não quer perdoar. "Annette" quer expor. Para isso, Carax funde a pureza da arte musical com a acidez da comédia urbana. O que se reflete, claro, na construção visual do longa. O diretor rompe com a linguagem clássica dos musicais ao modernizar primeiro o cenário. A fotografia em tons verde e azul de Caroline Champetier surge como um vislumbre de uma relação carregada de toxicidade. O minimalismo de grande parte dos enérgicos e inventivos números musicais converge com o constante flerte com a linguagem teatral. Sem querer revelar muito, a sequência em que o maestro comanda uma orquestra enquanto se abre perante o público é daqueles momentos arrepiantes conduzidos por um realizador com total controle do show.

Com um olhar singular para uma trama "cantada" em diversos outros acordes, "Annette" é cinema, é música, é vanguarda, é experimentalismo. Uma obra imune a rótulos. Um longa que assume a imperfeição vocal (e humana) para impactar. Um musical indiscutivelmente ousado e estranhamente acessível.